A animação brasileira Uma História de Amor e Fúria é uma obra ousada. Não apenas por ser um longa-metragem animado num país sem tradição gênero, mas por ser um longa animado, gênero que muitas pessoas associam ao público infantil, voltado para adultos, tratando de temas sérios como tortura e estupro e exibindo uma relativa quantidade de sangue e nudez. Ainda assim acredito que desavisados ainda irão protestar a respeito do conteúdo do filme, gerando uma polêmica semelhante à do filme Ted (2012) e um deputado.
A animação conta a história de um homem (Selton Mello) com mais de 600 anos em busca de sua amada, Janaina (Camila Pitanga), com quem se encontra e se separa ao longo da história do Brasil, onde diversos conflitos levam o casal a ficar separado, algumas vezes de forma violenta. A história vai desde as disputas entre tupinambás e tupiniquins no século XVII, passando pela revolta da balaiada no século XIX, a ditadura militar na década de 60 e, por fim num Brasil futurista e distópico no ano de 2096, onde se enfrenta uma guerra pela água que restou no planeta.
Apesar do pano de fundo histórico, o foco é o romance entre o personagem de Selton Mello e Janaina, que ele passa séculos tentando reencontrar apenas para perdê-la novamente. É interessante perceber como o protagonista se torna mais receoso de se aproximar de sua amada conforme o tempo passa, temendo que mais uma vez experimentem uma efêmera felicidade antes de serem separados por circunstâncias fora de seu controle. Ao mesmo tempo, o personagem vai adquirindo um relativo cinismo e desencanto em relação aos conflitos e revoltas populares que presencia, já que o resultado é quase sempre o mesmo: aqueles que têm pouco tem sua voz sufocada enquanto que aqueles que tem poder e posse nas mãos detêm a hegemonia. Assim, quando o vemos no último segmento, ele praticamente desistiu de fazer qualquer manifestação. Por outro lado, o trabalho de Camila Pitanga ajuda a transformar as múltiplas encarnações de Janaina em figuras não apenas adoráveis e apaixonantes, mas dotadas de incrível força e determinação, não sendo difícil entender porque o protagonista mantém um sentimento forte em relação a ela.
É interessante também a abordagem do filme aos fatos históricos tratados, que mostram uma visão diferente àquela que estamos acostumados a ver nos livros de história (pelo menos na minha época de ensino fundamental e médio), em especial no segmento dos indígenas e da balaiada, revelando um lado que poucos conhecem sobre a construção de nosso país. Com isso não quero aqui entrar no mérito se estes retratos históricos são corretos ou incorretos, não sou historiador e me faltam conhecimentos específicos da área para tecer qualquer comentário neste sentido. Meu ponto aqui é que conhecer um novo olhar sobre um fato conhecido e dialogar as duas perspectivas é sempre benéfico para a construção do nosso senso crítico e da capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros, atributo essencial para a prática da cidadania.
Já o segmento futurista surpreende pelos paralelos com o mundo e o Brasil de hoje, desde os perigos de um totalitarismo corporativo passando pela problemática de se ter um estado não-laico onde a teologia é utilizada como justificativa para as desigualdades sociais.
O trabalho de animação é bastante competente e não deve nada para produções internacionais. Não é algo do nível das animações de um grande estúdio como a Disney, mas ainda assim é muito bem realizado. A música é outro ponto interessante, recorrendo a ritmos e canções de diferentes regiões e tempos para situar cada segmento da história em seu contexto espaço-temporal. Os segmentos em si é que são um relativo problema, já que entre um e outro temos a sensação de estarmos assistindo capítulos isolados ao invés de partes de uma única narrativa, conferindo um tom episódico ao fluxo de desenvolvimento da obra. O filme também é relativamente curto, cerca de 75 minutos, uma pena, pois fica a sensação de que algumas partes poderiam ter sido estendidas.
Uma História de Amor e Fúria é um filme muito bem-vindo, que sai dos lugares-comuns estabelecidos pelo cinema comercial brasileiro nos últimos anos e investe em um gênero com pouco espaço na produção nacional e com grande potencial para se expandir. Uma obra instigante e ousada que merece ser vista, apesar de seus problemas.
Nota: 6/10
Nenhum comentário:
Postar um comentário