Muitos
filmes (e livros e peças, entre outros) já foram feitos sobre o duelo entre o
homem e a natureza implacável, muitas histórias sobre força de vontade e
superação de condições adversas já foram contadas. O Regresso pode parecer na superfície que é mais uma dessas
histórias, mas não é exatamente sobre isso. Temos sim um sujeito em condições
adversas, mas provavelmente não foi isso que levou o diretor Alejandro Iñarritu
(que ganhou vários Oscars ano passado com Birdman)
a levar esta história para os cinemas e sim seu olhar sobre o que nos faz de
fato humanos e o que é exatamente que nos separa dos demais animais tidos como
irracionais.
A
trama é levemente baseada na história real de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio)
caçador de peles que trabalhava nas regiões ermas dos Estados Unidos. Durante
uma expedição Glass é atacado por um urso que o deixa gravemente ferido. Com o
inverno se aproximando, a companhia percebe que estão perdendo um tempo
precioso ao tentarem transportar Glass e destaca três homens, incluindo o filho
indígena de Glass, Hawk (Forrest Goodluck), para ficarem cuidando dele até que
se recupere. Um deles, Fitzgerald (Tom Hardy), decide que estão correndo um
risco muito grande cuidando de um homem praticamente morto em um terreno tão
perigoso e acaba matando Hawk e enterrando Glass vivo. Glass sobrevive e mesmo
debilitado decide cruzar as florestas geladas atrás de Fitzgerald.
É
interessante perceber o modo como brancos e indígenas atacam uns aos outros e
fazem ameaças como se a vida daqueles que são diferentes de si não valessem
nada, a mesma atitude de Fitzgerald, que decide matar duas pessoas como quem
elimina duas baratas na cozinha. Nesse sentido, praticamente nenhum dos humanos
que aparece em cena é diferente do urso que estraçalha Glass sem esforço para
proteger os filhotes, matando irracionalmente qualquer coisa se que se coloque
em seu caminho e pensando somente em si e nos seus iguais.
O
que nos diferencia de animais selvagens, o filme parece sugerir, é justamente
capacidade de ver no outro, no diferente, um igual. É fácil ter consideração
por aqueles que se parecem com você, que pensam igual e vivem igual, assim como
é fácil transformar qualquer um que seja diferente em "outro", numa
coisa impessoal que não é dotada da mesma importância que se dá aos iguais e
portanto, possível de ser tratada de modo desumano.
A
jornada de Glass serve exatamente para ilustrar isso, não apenas por sua esposa
e filho indígenas, mas pelo fato de que se não fosse capaz de tratar e aceitar
se tratado como igual por aqueles que são diferentes, ele não teria
sobrevivido. Afinal, sem o indígena que cuidou de suas feridas, ele
provavelmente não teria sobrevivido e da mesma maneira, se não tivesse tido
compaixão pela mulher indígena sendo estuprada pelos franceses, certamente
teria recebido um tratamento mais hostil dos índios que encontra mais a frente.
É essa capacidade de superar o próprio instinto mesquinho e ver o outro como
igual que torna Glass diferente de animais como Fitzgerald e o urso.
A
câmera de Iñarritu filma a natureza com certa reverência e não apenas em
relação à sua incontestável beleza, mas também pelo seu poder implacável. É
algo digno de admiração e encanto, mas também de respeito e até temor, quase
como se fosse uma entidade viva, uma presença física do divino e nesse sentido
lembra muito os trabalhos de Terrence Malick (A Árvore da Vida, Além da
Linha Vermelha). Isso fica particularmente claro na cena em Hawk é
assassinado e imediatamente o vento começa a zunir com ferocidade e os troncos
de árvores rangem, quase como se a floresta protestasse contra a crueldade do
explorador.
As
tomadas amplas e a opção por iluminação natural ajudam a passar a sensação de
desolação gélida das paisagens ermas e nos mantêm imersos neste meio
implacável. Do mesmo modo, os planos longos nos embates do filme contribuem
para o realismo e tensão desses momentos, sem economizar na violência brutal
destes eventos. A cena do ataque do urso é incrivelmente angustiante, pois a
câmera não nos dá um segundo de descanso, se mantendo focada em Glass o tempo
todo. O urso, aliás, é uma criatura digital incrivelmente bem feita e imagino
que muitos deixarão a projeção achando que DiCaprio interagiu com um animal de
verdade. Além disso, o filme ainda é beneficiado pela música que ajuda a
construir a sensação de desolação, isolamento e desesperança que a situação de
Glass convoca.
No
entanto, nada desse esmero técnico valeria se não conseguíssemos nos conectar
com os personagens e nesse sentido temos um ótimo trabalho por parte de
Leonardo DiCaprio e Tom Hardy. DiCaprio passa a maior parte do filme ferido, se
arrastando e grunhindo, contando quase que apenas com os olhos para transmitir
suas emoções e é impressionante o quanto ele passa apenas com um olhar. Além
disso, sua linguagem corporal nos convence de que ele está gravemente ferido e
o quanto é doloroso continuar se movendo e os longos closes em seu rosto
conforme se arrastam contribuem para uma experiência aflitiva.
Devo
ser sincero, no entanto, que depois de certo tempo se torna cansativo e
redundante mais um plano longo do DiCaprio urrando de dor e o filme poderia ter
facilmente uns vinte minutos a menos para uma experiência mais coesa, mas isso
é mais culpa do filme do que do ator e em nada diminui a força de seu trabalho.
Hardy
também é bastante eficiente como um homem carregado de cicatrizes físicas e
emocionais, implacável, cruel, mesquinho e cheio de preconceitos, um personagem
que tem consciência do ambiente bruto em que habita e tenta ser ainda mais
bruto. Domhnall Gleeson engata mais um bom trabalho depois de Star Wars: O Despertar da Força e do
excelente Ex Machina: Instinto Artificial
(sem mencionar o vindouro Brooklyn),
ao trazer uma boa medida sinceridade e calor humano ao capitão dos caçadores,
um papel que poderia facilmente descambar para uma caricatura unidimensional.
Assim
sendo, O Regresso é um feroz estudo
sobre o que é exatamente ser humano e o que nos diferencia dos outros animais,
abrilhantado por uma direção segura e um ótimo elenco.
Nota:
9/10
Trailer:
Fiquei com essa mesma sensação realacionada ao tempo, poderia ali tirar uns minutinhos do "sofrimento" do personagem de Dicaprio que acho que teríamos uma experiência mais "fechadinha".
ResponderExcluirDe qualquer sorte é um grande filme.
Dicaprio vai levar o Oscar, mas você não acha que ele já merecia antes não? Em O Aviador ou Lobo de Wall Street?
Márcio, pra ser sincero acho que ele já podia ter ganho quando foi indicado a melhor ator coadjuvante por Gilbert Grape: Aprendiz de Sonhador, mas sim, tem outros papéis que ele merecia como esses que você citou, além de Ilha do Medo. Na verdade, nem acho O Regresso o melhor trabalho dele, mas se é pra ganhar por esse, que seja.
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