Assistir
este pavoroso Um Suburano Sortudo foi
a experiência mais dolorosa do meu dia e, considerando que imediatamente antes
dele eu assisti ao intenso e implacável filme de holocausto O Filho de Saul, isso diz muito sobre o
quanto esta comédia é completamente insuportável.
O
filme acompanha o humilde Denílson
(Rodrigo Sant'anna) um vendedor de rua que inesperadamente descobre ser
herdeiro de Damião (Stepan Nercessian), um milionário dono de uma rede
varejista. Logicamente seus parentes ricos não ficam contentes com a chegada do
vendedor ambulante na casa e resolvem fazer o possível para se livrar dele.
Seria
um material interessante para uma boa comédia de costumes no estilo de Trocando as Bolas (1983), mas troca
qualquer possibilidade de um olhar mordaz sobre relações de classe no Brasil
por um humor preguiçoso, rasteiro e cheio de piadas fáceis e estereótipos
antiquados, tal como acontece na maioria das comédias nacionais como o recente
e igualmente terrível Até Que a Sorte Nos Separe 3 (2015).
Na
verdade, muito do que falei sobre Até Que a Sorte Nos Separe 3 se aplica a este filme e eu só não copio e colo aqui
tudo que escrevi antes porque diferente dos responsáveis por este filme, eu
gosto de me empenhar no que faço ao invés de seguir pelo caminho mais fácil e de
menor esforço.
A
primeira coisa é a natureza completamente histérica do protagonista, na qual
todos os diálogos são berrados a todo tempo com uma artificialidade
imensa e cuja insistência rapidamente torna-se cansativa e irritante. Isso
atinge o ápice na cena em que Denílson leva Sofia (Carol Castro) para conhecer
sua família e o que se segue é um plágio de alguns dos piores momentos da
carreira de Eddie Murphy conforme Sant'anna interpreta toda a família de
Denílson como um bando imbecis que só sabem berrar e peidar. Os cerca de dez
minutos de cena demoraram uma eternidade para passar e eu apenas torci para
sair com a audição incólume a esse brutal abuso dos meus sentidos.
Além
disso as próteses que exageram certas feições do rosto usadas para compor a
família claramente querem ressaltar a feiura daquelas pessoas, concebendo-as
quase como aberrações do que como pessoas, como se quisessem dizer que todo
pobre é horroroso. Na verdade, o protagonista apresenta-se como uma criatura
completamente bestializada, comportando-se mais como um animal que age por
impulsos primitivos do que um sujeito que existe em nosso mundo.
Isso
fica claro na cena em ele sai para ir ao banheiro e retorna para a sala sem
calças dizendo que o papel higiênico acabou. Ora nenhuma pessoa, por mais
humilde que sejam suas origens e por menos educação formal que tenha recebido,
jamais faria isso. Eu sei que o humor muitas vezes passa pelo absurdo, pelo
exagero e pelo surreal, mas aqui isso é usado apenas para reforçar o
preconceito anacrônico que "pobre não sabe se comportar".
Boa
parte das "piadas" feitas pelo protagonista também são baseadas na
mera vocalização de preconceitos e ofensas, o típico humor de "ofensas de playground" que é usado por pessoas
como Adam Sandler. O que mais chama a atenção e incomoda é o modo como é
construída a relação entre o protagonista e seu interesse romântico, Sofia.
Na
primeira cena entre os dois, Denílson imediatamente começa a lamber os beiços
assim que a vê e imediatamente se inclina para beijá-la na boca quando ela
passa perto de si, porque, claro, nenhuma mulher vai fazer nenhuma objeção em
beijar um sujeito que acabou de conhecer. Mais que isso, ele imediatamente
berra "gostosa!" na cara dela assim que começam a conversar e ao se
despedir aponta para ela e faz que vai desenhar um coração no ar com os dedos,
mas aponta diretamente para o pênis, porque, óbvio, nada arrebata mais uma
mulher do assegurá-la que ela não passa de um objeto para sexo.
Isso
apenas na primeira cena entre os dois, mas a situação não melhora conforme o
filme transcorre e culmina na declaração de amor que o protagonista faz a ela,
na qual ele diz que a ama listando o quanto quer beijar seu corpo e
enlouquecê-la na cama. Afinal todos sabemos que não há nada que uma mulher
considere mais romântico, garantidor de verdadeiro amor e afeição, do que ouvir
um homem dizer que só se interessa e presta atenção em seus atributos físicos.
O pior de tudo é que, seguindo uma lógica "adam sandleresca", Sofia se
encanta por este sujeito que não faz nada além de tratá-la com grosseria e
reduzi-la a um objeto de desejo.
A
única outra personagem feminina de significância é a ex-namorada de Denílson em
sua comunidade e se inicialmente ela diz para ele não ficar olhando para sua
bunda, assim que descobre que ele está rico passa a cair de amores por ele. Ou
seja, ela é uma interesseira fútil. Para deixar claro: temos apenas duas
personagens femininas de presença significativa na trama e uma delas é um mero
pedaço de carne a ser consumido pelo protagonista enquanto que a outra apenas
se interessa por dinheiro, os dois estereótipos femininos mais comuns do
machismo e se isso não torna este filme uma obra misógina e desprezível, não
sei o que mais faria.
Na
verdade, sei sim, basicamente boa parte das outras piadas do filme o tornam
igualmente preconceituoso. Ao ouvir um personagem dizer um termo em inglês
Denílson imediatamente grita "bicha!", quando uma personagem travesti
aparece o personagem principal imediatamente diz "mulher-banana!".
Sempre que ele profere algo assim as pessoas ao seu redor se escandalizam, mas
o protagonista imediatamente minimiza o acontecido ao dizer que na sua
comunidade ninguém se importa com "essa coisa de politicamente
correto" e que apesar do que acabou de falar ele não tem preconceito
contra gays/travestis/negros/qualquer minoria e que até se relaciona com eles.
Isso, claro, é uma tentativa de desmerecer as críticas que o filme irá
obviamente receber por seu conteúdo e devo dizer que é um expediente
incrivelmente covarde.
Primeiro
porque se você precisa justificar algo que acabou de dizer com "não sou
preconceituoso" é por saber que há um óbvio teor de preconceito em sua
fala. Segundo que ao falar isso o personagem (e o filme) tentam desonesta e
covardemente transformar o personagem em vítima da hostilidade e intolerância
de terceiros ao invés de assumirem a responsabilidade pelo que dizem (tanto os
realizadores quanto os personagens). Terceiro que tentar criticar, diminuir,
ofender ou menosprezar alguém por aquilo que pessoa é simplesmente é a
definição básica de preconceito, então tentar negar isso é uma cretinice sem
tamanho. Eu teria até um mínimo respeito por essa obra se ela assumisse o
próprio discurso (como faz Até Que a Sorte Nos Separe 3) ao invés de tentar sair pela tangente. É como se os
realizadores do filme caminhassem até você, te dessem um soco no rosto e depois
dissessem que não tem nada além de respeito por você antes de irem embora. O fato de falarem em respeito não anula que um ato agressivo tenha acabado de
acontecer.
O
mesmo tipo de desculpinha fajuta e covarde é usada para tentar justificar a
exploração de um humor escatológico preguiçoso ao colocar Sofia para dizer que
as pessoas tem preconceito com escatologia. A fala mais uma vez tenta
desonestamente colocar o filme como uma vítima das críticas que inevitavelmente
irá receber, como se todas elas fossem imediatamente partir de um bando de
elitistas intolerantes atacando-o injustamente, o que não é o caso.
A
questão não é a escatologia em si, seu uso é obviamente capaz de gerar boas
situações cômicas como a cena da diarreia em Debi e Loide (1994), a cena do banheiro no inicio de Quem Vai Ficar Com Mary (1998) ou a cena
em que os protagonistas entram em um banheiro feminino em Madrugada Muito Louca (2004). A questão é que todos os produtos
citados criam um contexto no qual a exibição ou menção de peidos, diarreia,
bundas e pênis se torna engraçado e esse filme não faz nada disso. O que
acontece em Um Suburbano Sortudo é
que eles simplesmente mostram alguém peidando e pronto, não há contexto, não há
construção de cena, há apenas o filme gritando para você: "Olha só
pessoal, um peido! Peidos são engraçados!". Não existe labor criativo ou
dramatúrgico nisso, não há mérito artístico em algo que praticamente qualquer
um é capaz de pensar e, convenhamos, qualquer pessoa é capaz de escrever
"e então fulano peida".
"Ah!
Você diz que o filme tem uma construção preconceituosa das camadas mais
humildes, mas e o final que mostra como eles são trabalhadores e unidos?",
você eloquentemente me pergunta. Bem, existem duas respostas para isso. A
primeira é que isso é muito pouco e muito tarde, dar um discurso cheio de
senso comum nos últimos dez minutos de filme faz pouco para anular o festival
de preconceitos e estereótipos que veio antes. Segundo que a conclusão da
história é simplesmente estúpida, inverossímil e artificial, feito para forçar
um final feliz aos quarenta e cinco do segundo tempo quando o filme não foi
capaz de pensar numa solução minimamente plausível ao longo de seus noventa
minutos. Se juntar meia dúzia de amigos e fazer uma promoção por uma semana que
fosse algo capaz de evitar a falência de qualquer empreendimento comercial
ninguém jamais iria falir e todo mundo seria um empresário de sucesso. O discurso final do personagem pesa tanto a mão no sentimentalismo e na
pieguice que ao invés de emocionar acaba soando ridículo.
"Epa!
O filme não esculhamba apenas os pobres, também sacaneia com os ricos!",
grita outro leitor e devo dizer que, você está correto, ainda que parcialmente.
Sim, o filme parodia os ricos, mas se limita aos clichês do tipo "rico é
esnobe" ou "rico odeia pobre" e nunca arrisca ir além de
observações superficiais e uma repetição de várias piadas que já vimos um monte
de vezes em outros lugares, como o empresário ganancioso, o pseudointelectual
metido a artista ou o mauricinho abestalhado.
Se
há alguma coisa que se salva nesse filme é Carol Castro, que desconfio não
estar atuando durante boa parte do filme, visto que seu constrangimento soa
incrivelmente real. Apesar disso, a atriz consigue manter a segurança ao ponto de não gerar vergonha alheia, mantendo a dignidade
conforme transita entre as situações degradantes e péssimos diálogos. O mesmo
não pode ser dito de outros coadjuvantes como os humoristas Vitor Leal e Fabio
Rabin, bons comediantes que passam vergonha ao serem limitados a caricaturas
vazias com um texto tão sem graça que nem Meryl Streep e Daniel Day Lewis
seriam capazes de salvar.
Um Suburbano Sortudo é uma coleção de clichês desgastados, piadas
preguiçosas e uma quantidade imensa de preconceitos anacrônicos e misoginia que
são piorados por um discurso apologético e covarde. Uma vergonha para o cinema
brasileiro. Aliás, risca isso, uma vergonha para o cinema.
Nota:
1/10
Trailer:
Nenhum comentário:
Postar um comentário