segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Critica - Um Suburbano Sortudo


Análise Um Suburbano Sortudo

Review Um Suburbano Sortudo
Assistir este pavoroso Um Suburano Sortudo foi a experiência mais dolorosa do meu dia e, considerando que imediatamente antes dele eu assisti ao intenso e implacável filme de holocausto O Filho de Saul, isso diz muito sobre o quanto esta comédia é completamente insuportável.

O filme acompanha o  humilde Denílson (Rodrigo Sant'anna) um vendedor de rua que inesperadamente descobre ser herdeiro de Damião (Stepan Nercessian), um milionário dono de uma rede varejista. Logicamente seus parentes ricos não ficam contentes com a chegada do vendedor ambulante na casa e resolvem fazer o possível para se livrar dele.

Seria um material interessante para uma boa comédia de costumes no estilo de Trocando as Bolas (1983), mas troca qualquer possibilidade de um olhar mordaz sobre relações de classe no Brasil por um humor preguiçoso, rasteiro e cheio de piadas fáceis e estereótipos antiquados, tal como acontece na maioria das comédias nacionais como o recente e igualmente terrível Até Que a Sorte Nos Separe 3 (2015).

Na verdade, muito do que falei sobre Até Que a Sorte Nos Separe 3 se aplica a este filme e eu só não copio e colo aqui tudo que escrevi antes porque diferente dos responsáveis por este filme, eu gosto de me empenhar no que faço ao invés de seguir pelo caminho mais fácil e de menor esforço.

A primeira coisa é a natureza completamente histérica do protagonista, na qual todos os diálogos são berrados a todo tempo com uma artificialidade imensa e cuja insistência rapidamente torna-se cansativa e irritante. Isso atinge o ápice na cena em que Denílson leva Sofia (Carol Castro) para conhecer sua família e o que se segue é um plágio de alguns dos piores momentos da carreira de Eddie Murphy conforme Sant'anna interpreta toda a família de Denílson como um bando imbecis que só sabem berrar e peidar. Os cerca de dez minutos de cena demoraram uma eternidade para passar e eu apenas torci para sair com a audição incólume a esse brutal abuso dos meus sentidos.

Além disso as próteses que exageram certas feições do rosto usadas para compor a família claramente querem ressaltar a feiura daquelas pessoas, concebendo-as quase como aberrações do que como pessoas, como se quisessem dizer que todo pobre é horroroso. Na verdade, o protagonista apresenta-se como uma criatura completamente bestializada, comportando-se mais como um animal que age por impulsos primitivos do que um sujeito que existe em nosso mundo.

Isso fica claro na cena em ele sai para ir ao banheiro e retorna para a sala sem calças dizendo que o papel higiênico acabou. Ora nenhuma pessoa, por mais humilde que sejam suas origens e por menos educação formal que tenha recebido, jamais faria isso. Eu sei que o humor muitas vezes passa pelo absurdo, pelo exagero e pelo surreal, mas aqui isso é usado apenas para reforçar o preconceito anacrônico que "pobre não sabe se comportar".

Boa parte das "piadas" feitas pelo protagonista também são baseadas na mera vocalização de preconceitos e ofensas, o típico humor de "ofensas de playground" que é usado por pessoas como Adam Sandler. O que mais chama a atenção e incomoda é o modo como é construída a relação entre o protagonista e seu interesse romântico, Sofia.

Na primeira cena entre os dois, Denílson imediatamente começa a lamber os beiços assim que a vê e imediatamente se inclina para beijá-la na boca quando ela passa perto de si, porque, claro, nenhuma mulher vai fazer nenhuma objeção em beijar um sujeito que acabou de conhecer. Mais que isso, ele imediatamente berra "gostosa!" na cara dela assim que começam a conversar e ao se despedir aponta para ela e faz que vai desenhar um coração no ar com os dedos, mas aponta diretamente para o pênis, porque, óbvio, nada arrebata mais uma mulher do assegurá-la que ela não passa de um objeto para sexo.

Isso apenas na primeira cena entre os dois, mas a situação não melhora conforme o filme transcorre e culmina na declaração de amor que o protagonista faz a ela, na qual ele diz que a ama listando o quanto quer beijar seu corpo e enlouquecê-la na cama. Afinal todos sabemos que não há nada que uma mulher considere mais romântico, garantidor de verdadeiro amor e afeição, do que ouvir um homem dizer que só se interessa e presta atenção em seus atributos físicos. O pior de tudo é que, seguindo uma lógica "adam sandleresca", Sofia se encanta por este sujeito que não faz nada além de tratá-la com grosseria e reduzi-la a um objeto de desejo.

A única outra personagem feminina de significância é a ex-namorada de Denílson em sua comunidade e se inicialmente ela diz para ele não ficar olhando para sua bunda, assim que descobre que ele está rico passa a cair de amores por ele. Ou seja, ela é uma interesseira fútil. Para deixar claro: temos apenas duas personagens femininas de presença significativa na trama e uma delas é um mero pedaço de carne a ser consumido pelo protagonista enquanto que a outra apenas se interessa por dinheiro, os dois estereótipos femininos mais comuns do machismo e se isso não torna este filme uma obra misógina e desprezível, não sei o que mais faria.

Na verdade, sei sim, basicamente boa parte das outras piadas do filme o tornam igualmente preconceituoso. Ao ouvir um personagem dizer um termo em inglês Denílson imediatamente grita "bicha!", quando uma personagem travesti aparece o personagem principal imediatamente diz "mulher-banana!". Sempre que ele profere algo assim as pessoas ao seu redor se escandalizam, mas o protagonista imediatamente minimiza o acontecido ao dizer que na sua comunidade ninguém se importa com "essa coisa de politicamente correto" e que apesar do que acabou de falar ele não tem preconceito contra gays/travestis/negros/qualquer minoria e que até se relaciona com eles. Isso, claro, é uma tentativa de desmerecer as críticas que o filme irá obviamente receber por seu conteúdo e devo dizer que é um expediente incrivelmente covarde.

Primeiro porque se você precisa justificar algo que acabou de dizer com "não sou preconceituoso" é por saber que há um óbvio teor de preconceito em sua fala. Segundo que ao falar isso o personagem (e o filme) tentam desonesta e covardemente transformar o personagem em vítima da hostilidade e intolerância de terceiros ao invés de assumirem a responsabilidade pelo que dizem (tanto os realizadores quanto os personagens). Terceiro que tentar criticar, diminuir, ofender ou menosprezar alguém por aquilo que pessoa é simplesmente é a definição básica de preconceito, então tentar negar isso é uma cretinice sem tamanho. Eu teria até um mínimo respeito por essa obra se ela assumisse o próprio discurso (como faz Até Que a Sorte Nos Separe 3) ao invés de tentar sair pela tangente. É como se os realizadores do filme caminhassem até você, te dessem um soco no rosto e depois dissessem que não tem nada além de respeito por você antes de irem embora. O fato de falarem em respeito não anula que um ato agressivo tenha acabado de acontecer.

O mesmo tipo de desculpinha fajuta e covarde é usada para tentar justificar a exploração de um humor escatológico preguiçoso ao colocar Sofia para dizer que as pessoas tem preconceito com escatologia. A fala mais uma vez tenta desonestamente colocar o filme como uma vítima das críticas que inevitavelmente irá receber, como se todas elas fossem imediatamente partir de um bando de elitistas intolerantes atacando-o injustamente, o que não é o caso.

A questão não é a escatologia em si, seu uso é obviamente capaz de gerar boas situações cômicas como a cena da diarreia em Debi e Loide (1994), a cena do banheiro no inicio de Quem Vai Ficar Com Mary (1998) ou a cena em que os protagonistas entram em um banheiro feminino em Madrugada Muito Louca (2004). A questão é que todos os produtos citados criam um contexto no qual a exibição ou menção de peidos, diarreia, bundas e pênis se torna engraçado e esse filme não faz nada disso. O que acontece em Um Suburbano Sortudo é que eles simplesmente mostram alguém peidando e pronto, não há contexto, não há construção de cena, há apenas o filme gritando para você: "Olha só pessoal, um peido! Peidos são engraçados!". Não existe labor criativo ou dramatúrgico nisso, não há mérito artístico em algo que praticamente qualquer um é capaz de pensar e, convenhamos, qualquer pessoa é capaz de escrever "e então fulano peida".

"Ah! Você diz que o filme tem uma construção preconceituosa das camadas mais humildes, mas e o final que mostra como eles são trabalhadores e unidos?", você eloquentemente me pergunta. Bem, existem duas respostas para isso. A primeira é que isso é muito pouco e muito tarde, dar um discurso cheio de senso comum nos últimos dez minutos de filme faz pouco para anular o festival de preconceitos e estereótipos que veio antes. Segundo que a conclusão da história é simplesmente estúpida, inverossímil e artificial, feito para forçar um final feliz aos quarenta e cinco do segundo tempo quando o filme não foi capaz de pensar numa solução minimamente plausível ao longo de seus noventa minutos. Se juntar meia dúzia de amigos e fazer uma promoção por uma semana que fosse algo capaz de evitar a falência de qualquer empreendimento comercial ninguém jamais iria falir e todo mundo seria um empresário de sucesso. O discurso final do personagem pesa tanto a mão no sentimentalismo e na pieguice que ao invés de emocionar acaba soando ridículo.

"Epa! O filme não esculhamba apenas os pobres, também sacaneia com os ricos!", grita outro leitor e devo dizer que, você está correto, ainda que parcialmente. Sim, o filme parodia os ricos, mas se limita aos clichês do tipo "rico é esnobe" ou "rico odeia pobre" e nunca arrisca ir além de observações superficiais e uma repetição de várias piadas que já vimos um monte de vezes em outros lugares, como o empresário ganancioso, o pseudointelectual metido a artista ou o mauricinho abestalhado.

Se há alguma coisa que se salva nesse filme é Carol Castro, que desconfio não estar atuando durante boa parte do filme, visto que seu constrangimento soa incrivelmente real. Apesar disso, a atriz consigue manter a segurança ao ponto de não gerar vergonha alheia, mantendo a dignidade conforme transita entre as situações degradantes e péssimos diálogos. O mesmo não pode ser dito de outros coadjuvantes como os humoristas Vitor Leal e Fabio Rabin, bons comediantes que passam vergonha ao serem limitados a caricaturas vazias com um texto tão sem graça que nem Meryl Streep e Daniel Day Lewis seriam capazes de salvar.

Um Suburbano Sortudo é uma coleção de clichês desgastados, piadas preguiçosas e uma quantidade imensa de preconceitos anacrônicos e misoginia que são piorados por um discurso apologético e covarde. Uma vergonha para o cinema brasileiro. Aliás, risca isso, uma vergonha para o cinema.

Nota: 1/10

Trailer:

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