Quando
uma série derivada de Breaking Bad foi
anunciada, temi que fosse apenas um caça-níqueis feito para faturar em cima da
popularidade e qualidade da série original. A primeira temporada de Better Call Saul, no entanto, me
surpreendeu por manter o alto nível de cuidado e atenção aos detalhes que o showrunner Vince Gilligan exibia em Breaking Bad. Mais que isso, era um
prelúdio que trazia tantas camadas adicionais a personagens conhecidos que
chegava até a enriquecer e me fazer olhar de outro modo vários momentos na
série original, algo raro quando uma narrativa trata de algo cujo final já
conhecemos. Quer dizer, na verdade não sabemos o fim de Saul Goodman, o que
sabemos está mais para o "meio" de sua história do que o final, como
deixam claros os flashfowards em
preto e branco que iniciam as duas temporadas e mostram que apesar da nova vida
aparentemente pacata, Jimmy McGill parece sentir falta de ser Goodman. Todas
essas qualidades se mantem nesse segunda temporada, que tratarei com mais
detalhes a seguir. Como de costume, pequenos SPOILERS são inevitáveis.
Esta
segunda temporada continua a ampliar o conflito entre Jimmy (Bob Odenkirk) e
seu irmão Chuck (Michael McKean) que ao final da temporada anterior revelou ser
o responsável por não permitir que Jimmy trabalhasse na empresa da qual ele é
sócio por não achar o irmão digno de ser advogado. A inclinação de Jimmy a atos
desonestos ou que podem ser vistos como antiéticos também começa a distanciá-lo
de sua namorada Kim (Rhea Seehorn), que não vê com bons olhos o modo como ele
ignora as regras e procedimentos. Ao mesmo tempo, Mike (Jonathan Banks)
continua a trabalhar para pequenos traficantes até o ponto em que Nacho
(Michael Mando, o Vaas de Far Cry 3)
lhe pede um serviço arriscado que o coloca na mira dos cartéis.
Aqui
Jimmy continua a tentar ser um advogado honesto, mas não mais para seu irmão,
pois já ficou claro que Chuck sempre o verá como alguém indigno, e sim para Kim
e pelo afeto que sente por ela. Aos poucos e com cuidado a narrativa vai
estabelecendo como Jimmy não se encaixa naquele mundo corporativo, do amplo e
sombrio apartamento que sua empresa o coloca ao fato de sua caneca não caber no
seu novo carro, tudo vai construindo o sentimento de que Jimmy e seu novo
emprego não se encaixam e em algum momento um dos dois terá que ceder.
Tudo
isso é conduzido com a mesma atenção aos detalhes que são característicos de
Vince Gilligan, no qual cada tomada parece ser cuidadosamente pensada para
transmitir algo ao espectador. Um exemplo é a cena que abre o season finale e coloca Jimmy à direita do quadro conversando com
uma enfermeira à esquerda e mais próxima da câmera, a fala deles parece sugerir
que um conhecido personagem está perto da morte, mas assim que ela se move,
vemos a pessoa sentada ao lado de Jimmy e percebemos que era uma terceira
pessoa que estava doente.
Chuck,
aliás, tem seu pedestal de autoridade moral desconstruído nesta nova temporada,
já que vamos percebendo que seus motivos para não querer o sucesso do irmão não
são apenas seus deslizes com a lei, mas que há uma grande dose de ciúme e
amargura presentes. Vemos isso no flashback
envolvendo a (ex? Falecida?) esposa de Chuck e o modo como ela ri alegremente
das piadas de Jimmy e não da de Chuck, assim como a maneira que a face de Chuck desaba ao
perceber que não consegue fazer a mulher rir como faz o irmão. Do mesmo modo,
no flashback envolvendo a mãe dos
dois, Chuck vai do choro ao desgosto ao perceber que as últimas palavras da mãe
são para Jimmy (que acabara de sair) e não para ele, com o ciúme dele sendo tamanho
que nem conta ao irmão que a mãe chamou seu nome.
Além
disso a trama é conduzida sem julgamentos ou moralismos simples, compreendendo
que bem e mal, certo e errado não são exatamente coisas simples de se definir
(uma abordagem também presente em Breaking
Bad) e que reverbera a fala de Mike na temporada anterior de que violar a
lei não torna ninguém bom ou mau, apenas um criminoso e isso sozinho não define
ninguém. Jimmy claramente se sente mais feliz, realizado e em contato com seu
verdadeiro "eu" justamente quando age por fora das regras, quando usa
sua esperteza para tomar atalhos que ninguém tomaria, mas apesar disso ainda há
bondade nele, tanto que ele continua a cuidar e se preocupar com o irmão mesmo
sabendo que Chuck nunca o verá como igual.
O
personagem, portanto, vai deixando de ser apenas um sujeito preocupado em fazer
a coisa certa (o que, em certa medida, ele é) para alguém mesquinho que quer o
fracasso do irmão por invejar a atenção que ele recebe das pessoas,
principalmente por ele, Chuck, ser tão correto e Jimmy não. É quase como se
Chuck julgasse como uma injustiça que gostem de Jimmy e não dele e que a
atenção dada ao irmão deveria ser para ele. O mais impressionante é como
Michael McKean consegue dizer tudo isso apenas com seu rosto, na maioria das
vezes são suas mudanças de expressão (e não suas palavras) que vão nos
revelando seus sentimentos em relação ao irmão. Isso fica terrivelmente claro
na cena final em que Chuck usa a bondade e o cuidado que Jimmy tem com ele
contra o próprio Jimmy, manipulando-o a confessar a fraude que cometeu.
Outro
que diz muito falando pouco é Jonathan Banks como Mike. Seu olhar severo e
expressão cansada muitas vezes nos contam frases inteiras sem abrir sua boca e
embora ele não tenha tido nesta temporada uma cena tão poderosa quanto seu
monólogo sobre o filho na temporada anterior (que, por sinal, me fez ver a
relação entre ele e Jesse em Breaking Bad
sob um novo olhar), ainda assim vemos como Mike vai ficando mais próximo de
ser o operador do crime que conhecemos. Inclusive ao ver as consequências do
modo como ele abordou a questão do Tuco Salamanca (Raymond Cruz), o conselho
dele para Walt em Breaking Bad sobre
o perigo de adotar "meias medidas" ganha ainda mais gravidade, já que
foi exatamente por escolher uma "meia medida" que ele se colocou em
tantos problemas.
Quem
surpreendeu na nova temporada foi Rhea Seehorn como Kim, que ganhou mais espaço
nesta segunda temporada. Além de uma química e um timing cômico muito bom com Bob Odenkirk, a atriz consegue construir de
modo convincente os sentimentos complicados e até mesmo conflitantes que ela
tem em relação a Jimmy. Kim tem uma clara afeição por ele e realmente parece se
divertir com os pequenos esquemas que faz com Jimmy para conseguir bebida de
graça, mas ao mesmo tempo tem uma clara aversão aos métodos pouco éticos dele e
teme que isso prejudique sua carreira. Tanto que ela recusa sociedade com ele e
aceita apenas dividir um espaço de negócios, mantendo suas práticas legais
separadas. Esse receio dela em relação a Jimmy certamente será um dos
principais motivos de uma eventual (e, imagino, inevitável) cisão entre eles,
principalmente com o que Chuck deve revelar sobre Jimmy na próxima temporada.
Assim
sendo, esta segunda temporada de Better
Call Saul continua a ser um drama muito bem cuidado (e com boas doses de
comédia) sobre Jimmy McGill tentando lutar contra seu próprio ímpeto de
desonestidade e como isso inevitavelmente irá afastá-lo das pessoas que lhe são
importantes.
Nota: 9/10
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