terça-feira, 19 de abril de 2016

Crítica - Better Call Saul: 2ª Temporada



Quando uma série derivada de Breaking Bad foi anunciada, temi que fosse apenas um caça-níqueis feito para faturar em cima da popularidade e qualidade da série original. A primeira temporada de Better Call Saul, no entanto, me surpreendeu por manter o alto nível de cuidado e atenção aos detalhes que o showrunner Vince Gilligan exibia em Breaking Bad. Mais que isso, era um prelúdio que trazia tantas camadas adicionais a personagens conhecidos que chegava até a enriquecer e me fazer olhar de outro modo vários momentos na série original, algo raro quando uma narrativa trata de algo cujo final já conhecemos. Quer dizer, na verdade não sabemos o fim de Saul Goodman, o que sabemos está mais para o "meio" de sua história do que o final, como deixam claros os flashfowards em preto e branco que iniciam as duas temporadas e mostram que apesar da nova vida aparentemente pacata, Jimmy McGill parece sentir falta de ser Goodman. Todas essas qualidades se mantem nesse segunda temporada, que tratarei com mais detalhes a seguir. Como de costume, pequenos SPOILERS são inevitáveis.

Esta segunda temporada continua a ampliar o conflito entre Jimmy (Bob Odenkirk) e seu irmão Chuck (Michael McKean) que ao final da temporada anterior revelou ser o responsável por não permitir que Jimmy trabalhasse na empresa da qual ele é sócio por não achar o irmão digno de ser advogado. A inclinação de Jimmy a atos desonestos ou que podem ser vistos como antiéticos também começa a distanciá-lo de sua namorada Kim (Rhea Seehorn), que não vê com bons olhos o modo como ele ignora as regras e procedimentos. Ao mesmo tempo, Mike (Jonathan Banks) continua a trabalhar para pequenos traficantes até o ponto em que Nacho (Michael Mando, o Vaas de Far Cry 3) lhe pede um serviço arriscado que o coloca na mira dos cartéis.

Aqui Jimmy continua a tentar ser um advogado honesto, mas não mais para seu irmão, pois já ficou claro que Chuck sempre o verá como alguém indigno, e sim para Kim e pelo afeto que sente por ela. Aos poucos e com cuidado a narrativa vai estabelecendo como Jimmy não se encaixa naquele mundo corporativo, do amplo e sombrio apartamento que sua empresa o coloca ao fato de sua caneca não caber no seu novo carro, tudo vai construindo o sentimento de que Jimmy e seu novo emprego não se encaixam e em algum momento um dos dois terá que ceder.

Tudo isso é conduzido com a mesma atenção aos detalhes que são característicos de Vince Gilligan, no qual cada tomada parece ser cuidadosamente pensada para transmitir algo ao espectador. Um exemplo é a cena que abre o season finale e coloca Jimmy à direita do quadro conversando com uma enfermeira à esquerda e mais próxima da câmera, a fala deles parece sugerir que um conhecido personagem está perto da morte, mas assim que ela se move, vemos a pessoa sentada ao lado de Jimmy e percebemos que era uma terceira pessoa que estava doente.


Além disso a trama é conduzida sem julgamentos ou moralismos simples, compreendendo que bem e mal, certo e errado não são exatamente coisas simples de se definir (uma abordagem também presente em Breaking Bad) e que reverbera a fala de Mike na temporada anterior de que violar a lei não torna ninguém bom ou mau, apenas um criminoso e isso sozinho não define ninguém. Jimmy claramente se sente mais feliz, realizado e em contato com seu verdadeiro "eu" justamente quando age por fora das regras, quando usa sua esperteza para tomar atalhos que ninguém tomaria, mas apesar disso ainda há bondade nele, tanto que ele continua a cuidar e se preocupar com o irmão mesmo sabendo que Chuck nunca o verá como igual.

Chuck, aliás, tem seu pedestal de autoridade moral desconstruído nesta nova temporada, já que vamos percebendo que seus motivos para não querer o sucesso do irmão não são apenas seus deslizes com a lei, mas que há uma grande dose de ciúme e amargura presentes. Vemos isso no flashback envolvendo a (ex? Falecida?) esposa de Chuck e o modo como ela ri alegremente das piadas de Jimmy e não da de Chuck, assim como a maneira que a face de Chuck desaba ao perceber que não consegue fazer a mulher rir como faz o irmão. Do mesmo modo, no flashback envolvendo a mãe dos dois, Chuck vai do choro ao desgosto ao perceber que as últimas palavras da mãe são para Jimmy (que acabara de sair) e não para ele, com o ciúme dele sendo tamanho que nem conta ao irmão que a mãe chamou seu nome.

O personagem, portanto, vai deixando de ser apenas um sujeito preocupado em fazer a coisa certa (o que, em certa medida, ele é) para alguém mesquinho que quer o fracasso do irmão por invejar a atenção que ele recebe das pessoas, principalmente por ele, Chuck, ser tão correto e Jimmy não. É quase como se Chuck julgasse como uma injustiça que gostem de Jimmy e não dele e que a atenção dada ao irmão deveria ser para ele. O mais impressionante é como Michael McKean consegue dizer tudo isso apenas com seu rosto, na maioria das vezes são suas mudanças de expressão (e não suas palavras) que vão nos revelando seus sentimentos em relação ao irmão. Isso fica terrivelmente claro na cena final em que Chuck usa a bondade e o cuidado que Jimmy tem com ele contra o próprio Jimmy, manipulando-o a confessar a fraude que cometeu.

Outro que diz muito falando pouco é Jonathan Banks como Mike. Seu olhar severo e expressão cansada muitas vezes nos contam frases inteiras sem abrir sua boca e embora ele não tenha tido nesta temporada uma cena tão poderosa quanto seu monólogo sobre o filho na temporada anterior (que, por sinal, me fez ver a relação entre ele e Jesse em Breaking Bad sob um novo olhar), ainda assim vemos como Mike vai ficando mais próximo de ser o operador do crime que conhecemos. Inclusive ao ver as consequências do modo como ele abordou a questão do Tuco Salamanca (Raymond Cruz), o conselho dele para Walt em Breaking Bad sobre o perigo de adotar "meias medidas" ganha ainda mais gravidade, já que foi exatamente por escolher uma "meia medida" que ele se colocou em tantos problemas.

Quem surpreendeu na nova temporada foi Rhea Seehorn como Kim, que ganhou mais espaço nesta segunda temporada. Além de uma química e um timing cômico muito bom com Bob Odenkirk, a atriz consegue construir de modo convincente os sentimentos complicados e até mesmo conflitantes que ela tem em relação a Jimmy. Kim tem uma clara afeição por ele e realmente parece se divertir com os pequenos esquemas que faz com Jimmy para conseguir bebida de graça, mas ao mesmo tempo tem uma clara aversão aos métodos pouco éticos dele e teme que isso prejudique sua carreira. Tanto que ela recusa sociedade com ele e aceita apenas dividir um espaço de negócios, mantendo suas práticas legais separadas. Esse receio dela em relação a Jimmy certamente será um dos principais motivos de uma eventual (e, imagino, inevitável) cisão entre eles, principalmente com o que Chuck deve revelar sobre Jimmy na próxima temporada.

Assim sendo, esta segunda temporada de Better Call Saul continua a ser um drama muito bem cuidado (e com boas doses de comédia) sobre Jimmy McGill tentando lutar contra seu próprio ímpeto de desonestidade e como isso inevitavelmente irá afastá-lo das pessoas que lhe são importantes.

Nota: 9/10

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