Certos eventos nos marcam para a
vida inteira, sejam eles bons ou ruins. As ocorrências ruins deixam traumas que
dificilmente cicatrizam. O cinema já trabalhou o peso de um grande trauma em
filmes como Sobre Meninos e Lobos
(2003) ou Ferrugem e Osso (2012). Mas
e se a vítima fosse obrigada a conviver com a pessoa que lhe causou mal? E se o
responsável publicasse sua história em livro que se tornaria um best-seller, obrigando a vítima a
reviver constantemente todas essas situações e roubando-lhe da escolha de
contar ou não sua própria história? É sobre esses questionamentos que A Garota do Livro irá tecer sua trama.
Alice (Emily VanCamp, a Sharon
Carter de Capitão América: Guerra Civil)
trabalha em uma editora selecionando manuscritos e sonha em se tornar
escritora, mas seu chefe constantemente ignora suas opiniões. Sua situação
piora quando o chefe pede que ela trabalhe no relançamento do best-seller do romancista Milan Daneker
(Michael Nyqvist) e isso desperta memórias dolorosas sobre seu passado.
Apesar de Alice ter um
comportamento autodestrutivo e ser constantemente controlada pelas duas figuras
masculinas de autoridade com quem convive (o pai e o chefe), o filme é sóbrio e
cuidadoso o bastante para jamais reduzi-la ao clichê da "mocinha
sofrida". VanCamp constrói com competência a baixa autoestima e
insegurança de Alice, que se porta como se estivesse sempre pisando em ovos e
silenciosamente berrando por atenção. Para ela o sexo parece ser o único modo
de ficar no controle e de ser notada, mesmo ela sabendo que isso pouco serve
para curar suas feridas e essa consciência da inutilidade do ato a faz se
detestar ainda mais. VanCamp ainda tem carisma suficiente para nos fazer torcer
por ela, mesmo quando Alice se entrega a atitudes irracionalmente destrutivas.
Conforme a narrativa se
desenvolve, acontecimentos do presente se alternam com flashbacks do passado que mostram como ela conheceu Milan. Através
dos dois tempos vemos como ela é ignorada pelo pai, que a interrompe sempre que
ela tenta falar e sequer deixa que a jovem escolha sua própria refeição em
restaurantes. Carente e solitária, é fácil entender o motivo dela se mostrar
tão lisonjeada com as atenções de Milan, um homem mais velho, articulado, que
se dispõe a ajudá-la com sua escrita e elogia sua inteligência. Ela, no
entanto, é ingênua para perceber as reais intenções do escritor, que claramente
tem outros interesses além da escrita, tanto que a critica duramente a partir
do momento que Alice se recusa a dar o que ele quer.
Michael Nyqvist impressiona ao
trazer a desfaçatez de Milan, que vê na jovem uma presa fácil para sua
manipulação e nos desperta um asco genuíno a cada toque ou frase inapropriada
que dirige à jovem. O fato do filme não nos mostrar nada demais acontecendo entre
eles (exceto por uma cena) e ainda nos deixar com a sensação de que ele é um
predador asqueroso mostra a competência da construção do personagem. Esse
incômodo é ampliado pelo modo como a diretora estreante Marya Cohn investe em planos longos, que fazem tudo parecer
interminável, e pelo fato da câmera sempre evidenciar o desconforto de Alice
durante essas situações.
O cinismo de Milan ao desmerecer
as acusações da garota como se fossem fantasias adolescentes (num claro exemplo
de gaslighting), inclusive
convencendo os pais dela a não lhe darem ouvidos, consegue despertar uma raiva que
raramente a ficção consegue. O livro dele, baseado na experiência, acaba sendo
uma forma quase que definitiva de silenciá-la (e perpetuar o trauma), já que
rouba da jovem o controle de sua própria história.
Esse controle também é tirado
dela pelo pai (que está sempre lhe dizendo o que fazer) e pelo chefe que a
ignora constantemente, mas imediatamente aceita as mesmas sugestões quando
vindas de um homem, o que indica que o problema talvez não seja Alice, mas a
desigualdade que há no modo como a sociedade trata homens e mulheres. O mesmo
olhar desigual se dá quando Alice chama a atenção do pai por suas múltiplas
parceiras e ele nega suas acusações por ser um "espírito livre". No
entanto, algumas cenas antes ele questiona Alice por não ter uma relação
estável ou filhos, como se isso fosse um problema para ela, mas uma virtude
para ele. É curioso, inclusive, que a única pessoa que a valorize
profissionalmente no filme seja justamente outra mulher, a escritora Karen
(Hollis Witherspoon), que lhe dá os manuscritos ao fim.
Há no filme uma questão sobre
ética artística no fato de Milan se apropriar completamente das histórias e
escritos de outra pessoa para compor sua própria obra, mas o filme jamais chega
a tocar nisso exatamente. Em parte é compreensível, já que o peso desse tipo de
questionamento se apequena quando levamos em conta a questão do abuso
envolvido, por outro lado não deixa de soar como uma oportunidade desperdiçada.
Principalmente pelo filme deixar tão evidente que Milan jamais conseguiu fazer
outro sucesso e sua falta de traquejo nas entrevistas nos faz crer que ele não
passa de um artista medíocre que jamais teria feito sucesso se não tivesse
tomado a história de Alice para si.
Assim, a jornada de Alice não é
apenas para tentar superar seus traumas, mas para tomar o controle de sua
própria vida. O confronto com Milan consegue manter o tom sóbrio e sem exageros
da narrativa, mas depois disso tudo parece ser resolver rápido demais e em um
tom mais meloso (em especial o blog
que ela faz para o namorado) que vai de encontro à sutileza demonstrada até então.
Mesmo com alguns pequenos
problemas, A Garota do Livro é um
ótimo longa de estreia para a diretora Marya Cohn e um drama bastante cuidadoso
sobre trauma e abuso.
Nota: 7/10
Trailer:
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