Quando escrevi sobre o
drama baseado em fatos reais Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo (2015) disse que era um perturbador estudo
de personagem sobre poder, riqueza e insanidade. Mesmo já conhecendo a história
do assassinato do lutador olímpico Dave Schultz pelo milionário John Du
Pont, a experiência de ver este
documentário Team Foxcatcher,
produção original do Netflix, foi tão ou mais inquietante do que ver a sua
reconstrução ficcional.
O documentário é conta sua
história através de entrevistas com os envolvidos, imagens de arquivo e também
áudios das conversas de Du Pont com a polícia durante o cerco a sua casa após o
assassinato. É bastante convencional em termos de estrutura documental, mas a
riqueza do material de arquivo ajuda a nos colocar em uma posição de
proximidade e intimidade em relação aos sujeitos documentados, sem falar que é
uma história tão rica que não deixa de soar interessante mesmo para quem
conferiu sua contraparte ficcional.
Os relatos e vídeos de
arquivo traçam um panorama bastante amplo da vida de John Du Pont, um homem
claramente solitário, infeliz, inseguro e de pouco traquejo social que usava
sua vasta fortuna para tentar se sentir incluído e importante. Com seu dinheiro
Du Pont criou uma espécie de realidade paralela para si mesmo, na qual ele era
um intelectual respeitado, um influente membro da comunidade e um campeão
esportivo. Dentro desse "mundo paralelo" Du Pont se via como um rei,
um deus, no qual sua vontade era lei e tudo girava ao seu redor e quando sua
concepção delirante de mundo colidia com a realidade, sua arrogância combinada
com seu comportamento paranoico e instável culminaram numa morte que se deu
praticamente a troco de nada.
Se no filme de 2015 Du Pont
era retratado como um sujeito patético e instável (em uma ótima interpretação
de Steve Carell diga-se de passagem), aqui vemos com um detalhamento assustador
toda a sua loucura e paranoia. Em dado momento nos é revelado que ele
desenvolveu pavor da cor preta, retirando todos objetos, carros, cavalos e até
mesmo os atletas negros de sua propriedade. Em outro ficamos sabendo como ele
colocava câmeras na propriedade e exibia as horas de filmagem aos conhecidos
para que eles vissem as "criaturas" que ele via vagando pela fazenda,
mas não havia nada nos vídeos alem da paisagem da floresta. Pior, Du Pont
ocasionalmente atirava (com armas e munição de verdade) nas
"criaturas" que via, colocando em risco todos na propriedade. Esse
senso de pavor constante e de tragédia inevitável é bastante marcado pela tensa
música, que consegue soar grave, mas sem pesar a mão ou ser demasiadamente
intrusiva.
O filme, no entanto, não
deixa que tudo caia sobre os ombros de Du Pont, lembrando que durante toda a
sua vida ele teve ao seu lado múltiplos indivíduos que contribuíram para criar
essa realidade falsa em que ele vivia, inclusive os próprios lutadores da
equipe Foxcatcher, simplesmente porque a amizade de Du Pont era conveniente
para eles, que se interessavam nos benefícios que a riqueza dele podia trazer.
Em dado momento os lutadores mencionam que a federação de wrestling dos Estados Unidos chegou a pensar em retirar os atletas
de lá por causa do comportamento errático de Du Pont, mas os próprios
lutadores, Dave incluso, garantiram que o milionário não passava de um sujeito
excêntrico e inofensivo.
Em nenhum momento o filme
tenta imputar em Dave qualquer tipo de culpa, afinal isso seria um contra-senso
argumentativo, mas lembrar que a situação jamais teria chegado ao ponto onde
chegou se todos ao redor de Du Pont não tivessem dado vazão à sua loucura e
fantasias delirantes, permitindo que ele realmente achasse que era capaz de
qualquer coisa por sua riqueza. O documentário é hábil em mostrar como a
fazenda Foxcatcher era atrativa aos atletas, não apenas pela sua infraestrutura
e equipamentos, mas por manter os atletas e suas famílias unidos naquele espaço
idílico no qual eles não tinham nada com que se preocupar além de desenvolver
seu esporte. Uma "utopia do esporte" como diz em dado momento um dos
entrevistados.
A face dessa utopia, no
entanto, não era Du Pont (ele era "o dinheiro", como fala alguém
durante as entrevistas), mas Dave, um exímio atleta e um homem humilde e
carismático que tinha o respeito e amizade dos atletas, sendo visto por eles
como um líder. Foi o carisma inerente de Dave que o fez (sem que ele soubesse)
"roubar" o protagonismo da situação que Du Pont desejava para si e
isso foi provavelmente um dos fatores que fez o milionário passar a detestar e
fantasiar com o lutador. Dave era tudo que Du Pont sempre quis ser e não
conseguiu mesmo com toda sua fortuna.
As entrevistas com os
lutadores evidenciam o sentimento de culpa que eles continuam a carregar, mesmo
depois de tanto tempo, por terem se deixado seduzir por essa utopia e pelo
conforto e conveniência que o dinheiro de Du Pont trazia a suas vidas. Muitos
deles simplesmente desabam ao falar da morte de Dave e alguns reconhecem que
deviam ter saído de lá antes, dados os muitos sinais de instabilidade por parte
de seu anfitrião. O retorno de Nancy, viúva de Dave, ao rancho Foxcatcher
durante o documentário e em especial ao fim, serve como contraponto às imagens
idílicas do início, que mostravam o local como uma bela e opulenta propriedade
rural. No presente, durante a visita de Nancy, Foxcatcher está abandonada,
muitas casas estão em ruínas e o lugar parece uma macabra cidade fantasma, bem
distante da imponência de outrora. As imagens me lembraram do poema Ozymandias
de Percy Shelley, que tratava de um império majestoso que jazia em ruína, e
(tanto as imagens como o poema) servem para lembrar que poder e riqueza não
duram para sempre nem conseguem construir um legado duradouro por si só.
Diante de tantas imagens
impactantes, uma ausência e um silêncio é igualmente chamativo no documentário.
Em nenhum momento Mark, irmão de Dave e personagem principal (vivido por
Channing Tatum) no relato ficcional do incidente em Foxcatcher, é citado,
mostrado nas imagens de arquivo ou ouvido nas entrevistas. Nenhum motivo é dado
para sua ausência, mas dada a sua proximidade com o irmão e o fatos de ambos
terem convivido em Foxcatcher, soa realmente esquisito que ele não se pronuncie
(provavelmente por vontade própria, já que duvido que os documentaristas não
tenham tentado contato com ele) sobre algo do qual esteve tão próximo.
Ainda assim, tal qual sua
contraparte na ficção, Team Foxcatcher
é um competente relato sobre uma tragédia anunciada e um homem que perdeu sua
vida à troco de nada por causa de alguém perdido em delírios de poder e
riqueza.
Nota: 8/10
Trailer:
Nenhum comentário:
Postar um comentário