segunda-feira, 4 de julho de 2016

Crítica - American Horror Story: Freak Show



Não cheguei a acompanhar as temporadas anteriores da série de antologia (na qual cada temporada contem uma história isolada) American Horror Story, mas fiquei bastante curioso quando foi anunciado que esta quarta temporada teria a temática o circo de horrores. Além do potencial de imagens perturbadoras que podiam ser geradas dessa premissa, o uso de "aberrações" de circo é um material ótimo para se discutir a natureza do monstro e da monstruosidade. Afinal, o que é exatamente um monstro? É apenas uma pessoa ou criatura que não se conforma aos padrões de normalidade? Ou há um fator mais interno e mais profundo que determina quem é ou não um monstro? Nesse sentido, Freak Show faz jus ao potencial de sua premissa e busca entender onde está a verdadeira aberração do ser humano. SPOILERS são inevitáveis daqui para frente.

A trama acompanha a trupe de um "circo de horrores" que chega a uma cidadezinha na Flórida na década de 50. Liderados pela cantora alemã Elsa (Jessica Lange), a trupe vai à cidade recrutar uma nova integrante, ou melhor novas. As escolhidas são as gêmeas siamesas Bette e Dot (ambas Sarah Paulson) que dividem um único corpo com suas duas cabeças. A chegada das ditas aberrações provoca curiosidade e repulsa na pequena comunidade e o contato entre os artistas e os locais acaba despertando coisas muito mais monstruosas do que as deformidades físicas dos protagonistas.

A temporada faz praticamente uma releitura do seminal filme Freaks (1932), de Tod Browning, que também uma acompanhava um grupo circense de "aberrações". O filme gerou controvérsia na época de seu lançamento por usar pessoas com deformidades reais no filme, sendo proibido em muitos países durante décadas. Ao longo da temporada vemos várias referências ou tributos ao filme de Browning.

O momento ele que eles cantam "Kill the copper!" (algo como "mate o tira!" em português) ao redor da mesa visa repetir a sonoridade dos versos "Gooble Gobble!" (a onomatopeia anglófona para o som feito pelo peru) entoados em Freaks (que também foram referenciados por Martin Scorsese em uma cena de O Lobo de Wall Street). Do mesmo modo, a perseguição a Stanley (Denis O'Hare) traz planos bem similares à perseguição da trapezista que, assim como Stanley faz aqui, tenta passar a perna nos artistas. O destino final de Stanley, inclusive, é o mesmo da trapezista de Freaks. Até mesmo o elenco de aberrações é similar, com a dupla de microcéfalos (vulgarmente chamados de pinheads ou cabeças de alfinete), o "homem-foca", o tronco sem pernas, o bebê adulto e outros. Falo isso não como uma crítica à originalidade ou criatividade da série, mas para reconhecer a força e a influência do trabalho de Browning que continua tão relevante hoje quanto na época que foi lançado e incompreendido e Freak Show prova isso.

Aqui, assim como na obra de Browning, as deformidades externas dos personagens servem apenas para trazer a tona as deformidades internas dos "normais" com os quais eles cruzam. Isso acontece com o pai de Penny (Grace Gummer) que destrói o rosto da filha ao descobrir que ela se apaixonou por uma "aberração" e também com Stanley, que os vê apenas como coisas a serem expostas ou animais a serem abatidos, negando aos artistas qualquer medida de humanidade. O principal expoente disso, no entanto, é Dandy (Finn Wittrock) um jovem rico e bonito, que considera todos ao seu redor como brinquedos ou objetos dos quais ele pode dispor como bem entender. Claro, ele é um psicopata, mas parte de sua conduta violenta vem justamente do fato dele se achar tão superior aos demais que deixa de vê-los como pessoas e os vê como coisas e o fato das "aberrações" não se curvarem ao que ele julga ser uma superioridade inquestionável de "macho-alfa" é o que motiva o horripilante genocídio que comete ao fim.

Para a série, não há horror maior do que deixar de ver o outro como semelhante. Ao fazermos isso negamos a ele sua humanidade e permitimos que seja feito a esse outro todo tipo de crueldade e indignidade, pois ao ser menos humano (ou nem ser considerado humano) ele deixa de "ser digno" de todo o decoro e consideração que damos aos que consideramos como iguais.

Enquanto os "normais" vão dando cada vez mais vazão aos monstros que guardam dentro de si, a trama vai nos aproximando cada vez mais das "aberrações" ao nos mostrar seus passados carregados de abuso, exploração e humilhação, como Ethel (Kathy Bates), a mulher barbada, cujo próprio marido vendeu ingressos para seu parto para que todos pudessem ver o "nascimento de uma aberração", quase como se estivesse chamando as pessoas para verem o parto de animal e não de um ser humano. O mesmo acontece com Paul (Mat Fraser) que resolveu cobrir o corpo de tatuagens macabras para assim dar as pessoas razão para olharem para ele como se fosse um monstro e é tocante o momento em que revela não ter tatuado o rosto por esta ser a única parte que considerava bela em si.

A mais trágica, no entanto, talvez seja a história de Pepper (Naomi Grossman), que é adotada por Elsa depois de ser abandonada pela família. Ao voltar a morar com a irmã, acaba sendo mandada para um hospício por causa de um crime que não cometeu, simplesmente porque a irmã queria se livrar do próprio filho, que também era uma "aberração", e de Pepper. A história dela inclusive conecta Freak Show a Asylum (a segunda temporada de American Horror Story), sugerindo que apesar de separadas, as tramas se passam em um universo compartilhado.

Conforme a trama avança, as tensões entre os diferentes personagens vão se agravando e a trama é hábil em criar um clima de suspense e incerteza no qual qualquer um pode ser o próximo. Há também um grande esmero em criar imagens verdadeiramente macabras, como as cenas envolvendo o palhaço Twisty (John Caroll Lynch), a aparição de duas faces interpretada por Wes Bentley ou a cena em que o mágico vivido por Neil Patrick Harris serra uma mulher ao meio.

Aqui e ali a série apresenta alguns problemas de ritmo quando alguns episódios avançam pouco a trama e parecem feitos apenas despistar. O exemplo maior é o episódio Pink Cupcakes, que nos direciona a pensar que Stanley irá matar as gêmeas siamesas e até o mostra fazendo isso, apenas para nos minutos finais voltar e mostrar que na verdade elas recusaram a comida envenenada, sendo que nada nas cenas anteriores sugeria que o que estávamos vendo era um delírio ou a imaginação de Stanley. Assim, apesar do momento perturbador em que vemos Dot deitada ao lado da irmã morta, todo o episódio pareceu uma enorme perda de tempo, já que não trouxe nenhum avanço real.

O desfecho ressalta a ideia de que a monstruosidade não está na aparência e sim nas ações e que muitos dos ditos "normais" são mais monstruosos do que qualquer "aberração". Elsa, que sempre escondeu de todos suas próteses nas pernas e nunca se considerou como parte das "aberrações" de seu show, finalmente vai para Hollywood e consegue sucesso. É um lugar cuja aparência é de sonho e perfeição, mas apesar de projetar sucesso e normalidade, vive presa a uma vida infeliz de falsas aparências e falsos amigos, apesar da beleza e perfeição não há afeto ou contato humano real. Há uma certa oportunidade desperdiçada em falar como televisão substituiu os circos como promotora de freak shows (afinal programas de "barraco" e sensacionalismo nada mais são que reedições dos circos de horrores de outrora, explorando a humilhação de outros), mas é apropriado que ao final ela escolha ser levada pela aparição do Halloween.

Já os artistas do circo conseguem finalmente se vingar de Dandy e o modo como o vilão é eliminado é bastante inteligente. Afogado em um enorme tanque de água, o cadáver de Dandy é exibido para nós de uma maneira semelhante aos corpos do "museu de aberrações" para o qual Stanley trabalhava, ressaltando como Dandy, no fim das contas é a maior aberração (e reparem que aqui não usei aspas) de todas.

O uso da música convoca suspense e estranhamento graças às longas notas sustentadas que sempre sugerem algo bizarro no horizonte. A escolha por colocar os personagens para cantar canções temporalmente deslocadas (que não existiam na época em que a trama se passa) como Life on Mars de David Bowie ou Come as You Are do Nirvana contribuem para a sensação de estranhamento. É preciso elogiar também os efeitos digitais que criam as gêmeas siamesas, bem como o talento de Sarah Paulson ao construir personagens claramente diferentes, trazendo expressões e entonações vocais distintas que nos permitem diferenciar as duas, mesmo quando apenas uma está no plano. Aliás, a escolha de enquadrá-las isoladamente não soa como uma decisão meramente pragmática de economizar dinheiro com efeitos especiais, mas como uma maneira de humanizá-las enquanto indivíduos, para lembrar que são realmente duas pessoas ali e não uma mera monstruosidade de duas cabeças.

De todo modo, American Horror Story: Freak Show é um macabro lembrete de que a verdadeira monstruosidade não reside no exterior do ser humano e sim no seu interior.

Nota: 8/10


Trailer:

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