sábado, 16 de julho de 2016

Crítica - Stranger Things: 1ª Temporada



Fazer um produto audiovisual a partir da nostalgia é uma faca de dois gumes. Por um lado algo que remete ao que as pessoas adoraram na infância imediatamente chama a atenção e cria expectativa nas pessoas que procuram algo que consiga recriar a magia de outrora. Por outro há o risco do resultado ser uma colcha de retalhos sem personalidade que não tem nada a dizer além de "lembra como você costumava gostar disso?". Esse problema felizmente não acontece nessa primeira temporada de Stranger Things, série original da Netflix que investe em um clima similar a aventuras juvenis dos anos 80 como Os Goonies (1985), E.T: O Extra-Terrestre (1982) ou Conta Comigo (1986), mas consegue criar um universo cheio de personalidade que sustenta por outros méritos além da nostalgia. A partir daqui, alguns pequenos SPOILERS são inevitáveis.

A série acompanha um grupo de quatro amigos, Mike (Finn Wolfhard), Lucas (Caleb McLaughlin), Dustin (Gaten Matarazzo) e Will (Noah Schnapp). Um dia, voltando da casa de Mike, Will desaparece misteriosamente ao encontrar uma criatura estranha na floresta. Ao mesmo tempo, uma menina misteriosa e com estranhos poderes mentais surge na cidade, aparentemente fugindo de agentes do governo. Desconfiando que ela, que diz se chamar Onze (Millie Bobby Brown), pode estar ligada ao sumiço do amigo, os garotos resolvem escondê-la na casa de Mike. Ao mesmo tempo, a mãe de Will, Joyce (Winona Ryder), começa a perceber fenômenos estranhos em sua casa e acha que é o filho desaparecido tentando se comunicar com ela.

Como nos filmes oitentistas citados anteriormente (e mais um punhado de outros que não menciono pra não inchar o texto), a série usa de acontecimentos fantásticos e sobrenaturais, para levar os personagens infantis e adolescentes a lidarem com questões e experiências bem reais como a descoberta do primeiro amor, a inevitável percepção da morte e de lidar com o luto e, claro, o entendimento do valor da amizade e de se manter unido diante das dificuldades. O roteiro também não poupa os jovens personagens de consequências sérias de lidar com forças tão poderosas (tanto as sobrenaturais quanto as governamentais), não sendo tímido em mostrar mortes e sangue, mas também sem banalizar ou exagerar na violência para não afastar o público mais novo. Essa primeira temporada não chega a reiventar a roda, mas é tudo conduzido com tanta competência que isso nem faz diferença.

O elenco infantil é um achado, não só eles convencem que são amigos de longa data e se conhecem desde pequenos, como também são convincentes ao evocar emoções complexas como o luto por alguém conhecido, ciúme ou frustração. Apesar de todas as referências nostálgicas, é no modo como a busca por Will testa a amizade do trio restante que constitui o coração da série e ver tudo isso se desenvolver rende tanto risos quanto lágrimas. Falando na qualidade do elenco infantil, tenho que destacar o trabalho da garota Millie Bobby Brown, que tem a difícil tarefa de compor uma personagem que quase não fala e ela consegue dizer muito apenas com o olhar ou uma leve inflexão de sua face. Onze é simultaneamente frágil, pelos anos sendo cobaia, e poderosa, graças aos poderes telecinéticos, e toda essa gama de sentimentos é vista no olhar da menina.

Winona Ryder faz de Joyce uma mulher que tenta dar o melhor para os filhos apesar das dificuldades. Ao encontrar um fio de esperança para reencontrar o filho, adota uma conduta tão obstinada e obsessiva para entender os fenômenos estranhos de sua casa que a faz parecer uma louca descontrolada. Uma surpresa é o xerife da cidade que inicialmente parece um típico policial interiorano adorador de donuts, mas se mostra a altura da tarefa de desbaratar uma conspiração governamental e ajudar Joyce, em parte pela empatia que tem por ela por causa de um trauma do passado. A sensação inicial em relação ao personagem talvez se deva pela escalação do ator David Harbour, que costumeiramente interpreta indivíduos patéticos, incompetentes ou corruptos, como em Aliança do Crime (2015) ou O Protetor (2014).

O percurso da temporada consegue manejar bem a intriga e o suspense, sempre oferecendo algumas respostas, mas sem entregar completamente o jogo nos mantendo intrigados a cada ocorrência bizarra que presenciamos. É preciso elogiar a reconstrução precisa de época, dos figurinos à arquitetura (como o porão com paredes de madeira), passando pelas referências culturais (musicais, cinematográficas, literárias, etc), a impressão é que estamos vendo algo que foi de fato filmado em 1980. A música contribui também com clima oitentista, com composições que usam predominantemente sintetizadores (instrumento altamente marcante no período), apelando para a nostalgia e também trabalhando para construir uma sensação de inquietação e suspense.

Além disso, muitas cenas parecem feitas diretas para remeter a produtos do período, como o momento dos garotos fugindo em suas bicicletas dos agentes do governo (remetendo a E.T: O Extra-Terrestre) ou a cena deles andando na linha do trem (que remonta a Conta Comigo). Seria possível fazer um texto inteiro só sobre essas referências, mas o mais importante delas é o modo como surgem organicamente ao longo da trama, sem parecem forçadas e sem berrar na cara do público "Olhem pessoal! Estamos reproduzindo uma cena de um filme que vocês viram quando crianças!". Alguns efeitos especiais soam artificiais, principalmente a computação gráfica usada nos portais do "mundo sombrio" ou mesmo em algumas cenas com o demogorgon, mas não chegam a ser algo que quebre a imersão e até dão um certo "charme retrô" à coisa toda.

A primeira temporada de Stranger Things consegue ir além de puro exercício de nostalgia, criando um universo com personalidade singular, personagens interessantes e um envolvente clima de mistério. Ao fim dos seus oito episódios ficamos curiosos pelo que virá a seguir.


Nota: 8/10

Trailer:

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