Fazer um produto audiovisual a partir da nostalgia é uma faca de dois gumes. Por um lado algo que remete ao que as pessoas adoraram na infância imediatamente chama a atenção e cria expectativa nas pessoas que procuram algo que consiga recriar a magia de outrora. Por outro há o risco do resultado ser uma colcha de retalhos sem personalidade que não tem nada a dizer além de "lembra como você costumava gostar disso?". Esse problema felizmente não acontece nessa primeira temporada de Stranger Things, série original da Netflix que investe em um clima similar a aventuras juvenis dos anos 80 como Os Goonies (1985), E.T: O Extra-Terrestre (1982) ou Conta Comigo (1986), mas consegue criar um universo cheio de personalidade que sustenta por outros méritos além da nostalgia. A partir daqui, alguns pequenos SPOILERS são inevitáveis.
A série acompanha um grupo de
quatro amigos, Mike (Finn Wolfhard), Lucas (Caleb McLaughlin), Dustin (Gaten
Matarazzo) e Will (Noah Schnapp). Um dia, voltando da casa de Mike, Will
desaparece misteriosamente ao encontrar uma criatura estranha na floresta. Ao
mesmo tempo, uma menina misteriosa e com estranhos poderes mentais surge na
cidade, aparentemente fugindo de agentes do governo. Desconfiando que ela, que
diz se chamar Onze (Millie Bobby Brown), pode estar ligada ao sumiço do amigo,
os garotos resolvem escondê-la na casa de Mike. Ao mesmo tempo, a mãe de Will,
Joyce (Winona Ryder), começa a perceber fenômenos estranhos em sua casa e acha
que é o filho desaparecido tentando se comunicar com ela.
Como nos filmes oitentistas
citados anteriormente (e mais um punhado de outros que não menciono pra não
inchar o texto), a série usa de acontecimentos fantásticos e sobrenaturais,
para levar os personagens infantis e adolescentes a lidarem com questões e
experiências bem reais como a descoberta do primeiro amor, a inevitável
percepção da morte e de lidar com o luto e, claro, o entendimento do valor da
amizade e de se manter unido diante das dificuldades. O roteiro também não
poupa os jovens personagens de consequências sérias de lidar com forças tão
poderosas (tanto as sobrenaturais quanto as governamentais), não sendo tímido
em mostrar mortes e sangue, mas também sem banalizar ou exagerar na violência
para não afastar o público mais novo. Essa primeira temporada não chega a
reiventar a roda, mas é tudo conduzido com tanta competência que isso nem faz
diferença.
O elenco infantil é um achado,
não só eles convencem que são amigos de longa data e se conhecem desde pequenos,
como também são convincentes ao evocar emoções complexas como o luto por alguém
conhecido, ciúme ou frustração. Apesar de todas as referências nostálgicas, é
no modo como a busca por Will testa a amizade do trio restante que constitui o
coração da série e ver tudo isso se desenvolver rende tanto risos quanto
lágrimas. Falando na qualidade do elenco infantil, tenho que destacar o
trabalho da garota Millie Bobby Brown, que tem a difícil tarefa de compor uma
personagem que quase não fala e ela consegue dizer muito apenas com o olhar ou
uma leve inflexão de sua face. Onze é simultaneamente frágil, pelos anos sendo
cobaia, e poderosa, graças aos poderes telecinéticos, e toda essa gama de
sentimentos é vista no olhar da menina.
Winona Ryder faz de Joyce uma
mulher que tenta dar o melhor para os filhos apesar das dificuldades. Ao
encontrar um fio de esperança para reencontrar o filho, adota uma conduta tão
obstinada e obsessiva para entender os fenômenos estranhos de sua casa que a
faz parecer uma louca descontrolada. Uma surpresa é o xerife da cidade que
inicialmente parece um típico policial interiorano adorador de donuts, mas se
mostra a altura da tarefa de desbaratar uma conspiração governamental e ajudar
Joyce, em parte pela empatia que tem por ela por causa de um trauma do passado.
A sensação inicial em relação ao personagem talvez se deva pela escalação do
ator David Harbour, que costumeiramente interpreta indivíduos patéticos,
incompetentes ou corruptos, como em Aliança do Crime (2015) ou O Protetor (2014).
O percurso da temporada consegue
manejar bem a intriga e o suspense, sempre oferecendo algumas respostas, mas
sem entregar completamente o jogo nos mantendo intrigados a cada ocorrência
bizarra que presenciamos. É preciso elogiar a reconstrução precisa de época,
dos figurinos à arquitetura (como o porão com paredes de madeira), passando
pelas referências culturais (musicais, cinematográficas, literárias, etc), a
impressão é que estamos vendo algo que foi de fato filmado em 1980. A música
contribui também com clima oitentista, com composições que usam
predominantemente sintetizadores (instrumento altamente marcante no período),
apelando para a nostalgia e também trabalhando para construir uma sensação de
inquietação e suspense.
Além disso, muitas cenas parecem
feitas diretas para remeter a produtos do período, como o momento dos garotos
fugindo em suas bicicletas dos agentes do governo (remetendo a E.T: O Extra-Terrestre) ou a cena deles
andando na linha do trem (que remonta a Conta
Comigo). Seria possível fazer um texto inteiro só sobre essas referências,
mas o mais importante delas é o modo como surgem organicamente ao longo da trama,
sem parecem forçadas e sem berrar na cara do público "Olhem pessoal! Estamos
reproduzindo uma cena de um filme que vocês viram quando crianças!".
Alguns efeitos especiais soam artificiais, principalmente a computação gráfica
usada nos portais do "mundo sombrio" ou mesmo em algumas cenas com o demogorgon,
mas não chegam a ser algo que quebre a imersão e até dão um certo "charme
retrô" à coisa toda.
A primeira temporada de Stranger Things consegue ir além de puro
exercício de nostalgia, criando um universo com personalidade singular,
personagens interessantes e um envolvente clima de mistério. Ao fim dos seus
oito episódios ficamos curiosos pelo que virá a seguir.
Nota: 8/10
Trailer:
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