Se você quisesse criar uma
história para falar sobre como pessoas como autismo podem ser inseridas na
sociedade e viverem vidas plenas apesar de suas deficiências, que tipo de
história você criaria? Tentaria contar uma história sobre uma pessoa que se
torna um bom profissional, forma uma família e cria profundos laços de amizade
ou uma trama sobre um sujeito autista que se torna um vigilante e assassino
implacável que mistura Jason Bourne, Batman e Lisbeth Salander? Pois é justa e
estranhamente à segunda opção que este O
Contador se apega e não tenho certeza se é a mais adequada para passar uma
mensagem de tolerância e importância de inserção social, embora o filme tenha
sua parcela de qualidades.
Christian Wolff (Ben Affleck) é
um homem que sofre de algum tipo de autismo ou Asperger e vive como contador.
Apesar de sua fachada pacata, ele na verdade trabalha lavando dinheiro para
vários grandes criminosos internacionais, mas também faz justiça com as
próprias mãos quando estes violam seu estrito código de honra. Seu cliente mais
recente é uma empresa de alta tecnologia que suspeita de desfalque. Quando ele
encontra o dinheiro faltando, ele e assistente contábil Dana (Anna Kendrick),
se tornam alvos de um grupo de mercenários liderados pelo misterioso Brax (Jon
Bernthal).
Affleck é ótimo em convocar a
inadequação social de Wollf, que fala sem olhar para seus interlocutores, não
exibe qualquer variação ou emoção em seu tom de voz. Incapaz de expressar os
próprios sentimentos, ele também não consegue entender plenamente quando outros
expressam os seus, basta ver sua reação perdida e confusa quando alguém usa uma
gíria ao falar com ele ou quando Dana lhe agradece depois que ele a salva. O
contador reage como se ela estivesse falando em um idioma completamente desconhecido
ou o conceito de gratidão de algum modo escapasse ao seu entendimento.
Seus modos e seu jeito de se
expressar são simples e diretos, sem qualquer entendimento de sutileza ou
nuance. Esses modos são também
refletidos na maneira como ele luta, movimentos curtos, rápidos e brutais sem
floreios que visam diretamente os pontos fracos dos adversários. Os flashbacks do personagem ajudam a
compreender como ele chegou até aquele ponto e a presença constante que figuras
paternas tiveram em sua vida. O cuidado na construção do personagem se reflete
até nas pequenas escolhas, como a fascinação que ele tem por um quadro de
Jackson Pollock, cuja técnica era justamente tentar encontrar o espontâneo
dentro do racional e do automatizado, algo que o protagonista, de certo modo
também busca ao tentar se relacionar normalmente com outras pessoas.
Por outro lado, ver Affleck, o
atual Batman, como um sujeito obsessivo, marcado por trauma, que viajou o mundo
estudando com diferentes professores, é um detetive incansável e um combatente
feroz que faz justiça cooperando com um policial que considera digno (e
interpretado por J.K Simmons, que será o Comissário Gordon no vindouro Liga da Justiça), remete tanto ao
cavaleiro das trevas que chega a quebrar um pouco a imersão. Até o uso da
canção de ninar Solomon Grundy
acidentalmente me fez pensar no super-herói. Se considerarmos que O Contador foi feito pela Warner,
estúdio responsável pelos filmes da DC (a editora pertence ao conglomerado
TimeWarner), fica parecendo uma espécie de beta
test para um eventual filme do homem-morcego. Não é exatamente um problema,
mas o acúmulo de coincidências é bem esquisito.
Anna Kendrick traz a mesma persona inadequada e sem muito traquejo
social que já usou em outros filmes, mas funciona aqui por ela ser adorável em
sua esquisitice e também pelo seu jeito esquisito tornar crível que sua
personagem tenha interesse por alguém como Wolff e que ele veja nela alguém que
pode compreendê-lo. Jon Bernthal (o Justiceiro da segunda temporada de Demolidor) tem pouco a fazer como um
mercenário clichê, cuja reviravolta final é bastante previsível.
Apesar do bom protagonista, o filme
é prejudicado por uma narrativa que demora demais a encontrar seu rumo e
apresenta um ritmo bastante irregular. Só depois de quase uma hora (de um total
de duas) de projeção é que o filme finalmente consegue delimitar seu conflito
principal e fazer convergir as tramas do contador, de Brax e da agente Medina
(Cynthia Addai-Robinson, a Amanda Waller de Arrow).
Com isso, a trama precisa correr para compensar o tempo perdido, o que torna o
segundo ato cheio de cenas puramente expositivas, nas quais os personagens
precisam gastar um tempo enorme para explicar muitas coisas que não tinham sido
até então exploradas. Um exemplo é a cena entre Medina e Ray (J.K Simmons), seu
superior, na casa do contador, na qual Ray se entrega a uma longa série de
explicações incessantes sobre seu passado que demoram mais do que deveria e
deixando tudo muito maçante. Seria melhor se esse grande volume de informação
estivesse distribuído ao longo do filme do que concentrado em poucas cenas que
não tem outra razão que não fornecer as informações que empacavam o
desenvolvimento da trama.
Do mesmo modo, o texto é pouco
hábil em conduzir suas reviravoltas. O diretor financeiro da empresa de
tecnologia age de uma maneira tão forçosamente suspeita que é óbvio que ele é
um despiste para que não vejamos o verdadeiro culpado. A revelação envolvendo o
mercenário Brax também é bastante fácil de antever e o vilão final é despachado
rapidamente sem que seus planos ou motivações sejam devidamente construídas
(por outro lado sua eliminação bem durante seu "discurso
megalomaníaco" é uma divertida quebra de expectativa).
O Contador nos apresenta um protagonista interessante, mas demora a
descobrir o que quer fazer com ele e se perde em uma trama insossa, cheia de
problemas de ritmo e com escolhas esquisitas em relação à mensagem que quer
passar.
Nota: 5/10
Trailer:
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