segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Crítica - O Contador

Resenha O Contador Ben Affleck

Review O Contador
Se você quisesse criar uma história para falar sobre como pessoas como autismo podem ser inseridas na sociedade e viverem vidas plenas apesar de suas deficiências, que tipo de história você criaria? Tentaria contar uma história sobre uma pessoa que se torna um bom profissional, forma uma família e cria profundos laços de amizade ou uma trama sobre um sujeito autista que se torna um vigilante e assassino implacável que mistura Jason Bourne, Batman e Lisbeth Salander? Pois é justa e estranhamente à segunda opção que este O Contador se apega e não tenho certeza se é a mais adequada para passar uma mensagem de tolerância e importância de inserção social, embora o filme tenha sua parcela de qualidades.

Christian Wolff (Ben Affleck) é um homem que sofre de algum tipo de autismo ou Asperger e vive como contador. Apesar de sua fachada pacata, ele na verdade trabalha lavando dinheiro para vários grandes criminosos internacionais, mas também faz justiça com as próprias mãos quando estes violam seu estrito código de honra. Seu cliente mais recente é uma empresa de alta tecnologia que suspeita de desfalque. Quando ele encontra o dinheiro faltando, ele e assistente contábil Dana (Anna Kendrick), se tornam alvos de um grupo de mercenários liderados pelo misterioso Brax (Jon Bernthal).

Affleck é ótimo em convocar a inadequação social de Wollf, que fala sem olhar para seus interlocutores, não exibe qualquer variação ou emoção em seu tom de voz. Incapaz de expressar os próprios sentimentos, ele também não consegue entender plenamente quando outros expressam os seus, basta ver sua reação perdida e confusa quando alguém usa uma gíria ao falar com ele ou quando Dana lhe agradece depois que ele a salva. O contador reage como se ela estivesse falando em um idioma completamente desconhecido ou o conceito de gratidão de algum modo escapasse ao seu entendimento.

Seus modos e seu jeito de se expressar são simples e diretos, sem qualquer entendimento de sutileza ou nuance.  Esses modos são também refletidos na maneira como ele luta, movimentos curtos, rápidos e brutais sem floreios que visam diretamente os pontos fracos dos adversários. Os flashbacks do personagem ajudam a compreender como ele chegou até aquele ponto e a presença constante que figuras paternas tiveram em sua vida. O cuidado na construção do personagem se reflete até nas pequenas escolhas, como a fascinação que ele tem por um quadro de Jackson Pollock, cuja técnica era justamente tentar encontrar o espontâneo dentro do racional e do automatizado, algo que o protagonista, de certo modo também busca ao tentar se relacionar normalmente com outras pessoas.

Por outro lado, ver Affleck, o atual Batman, como um sujeito obsessivo, marcado por trauma, que viajou o mundo estudando com diferentes professores, é um detetive incansável e um combatente feroz que faz justiça cooperando com um policial que considera digno (e interpretado por J.K Simmons, que será o Comissário Gordon no vindouro Liga da Justiça), remete tanto ao cavaleiro das trevas que chega a quebrar um pouco a imersão. Até o uso da canção de ninar Solomon Grundy acidentalmente me fez pensar no super-herói. Se considerarmos que O Contador foi feito pela Warner, estúdio responsável pelos filmes da DC (a editora pertence ao conglomerado TimeWarner), fica parecendo uma espécie de beta test para um eventual filme do homem-morcego. Não é exatamente um problema, mas o acúmulo de coincidências é bem esquisito.

Anna Kendrick traz a mesma persona inadequada e sem muito traquejo social que já usou em outros filmes, mas funciona aqui por ela ser adorável em sua esquisitice e também pelo seu jeito esquisito tornar crível que sua personagem tenha interesse por alguém como Wolff e que ele veja nela alguém que pode compreendê-lo. Jon Bernthal (o Justiceiro da segunda temporada de Demolidor) tem pouco a fazer como um mercenário clichê, cuja reviravolta final é bastante previsível.

Apesar do bom protagonista, o filme é prejudicado por uma narrativa que demora demais a encontrar seu rumo e apresenta um ritmo bastante irregular. Só depois de quase uma hora (de um total de duas) de projeção é que o filme finalmente consegue delimitar seu conflito principal e fazer convergir as tramas do contador, de Brax e da agente Medina (Cynthia Addai-Robinson, a Amanda Waller de Arrow). Com isso, a trama precisa correr para compensar o tempo perdido, o que torna o segundo ato cheio de cenas puramente expositivas, nas quais os personagens precisam gastar um tempo enorme para explicar muitas coisas que não tinham sido até então exploradas. Um exemplo é a cena entre Medina e Ray (J.K Simmons), seu superior, na casa do contador, na qual Ray se entrega a uma longa série de explicações incessantes sobre seu passado que demoram mais do que deveria e deixando tudo muito maçante. Seria melhor se esse grande volume de informação estivesse distribuído ao longo do filme do que concentrado em poucas cenas que não tem outra razão que não fornecer as informações que empacavam o desenvolvimento da trama.

Do mesmo modo, o texto é pouco hábil em conduzir suas reviravoltas. O diretor financeiro da empresa de tecnologia age de uma maneira tão forçosamente suspeita que é óbvio que ele é um despiste para que não vejamos o verdadeiro culpado. A revelação envolvendo o mercenário Brax também é bastante fácil de antever e o vilão final é despachado rapidamente sem que seus planos ou motivações sejam devidamente construídas (por outro lado sua eliminação bem durante seu "discurso megalomaníaco" é uma divertida quebra de expectativa).

O Contador nos apresenta um protagonista interessante, mas demora a descobrir o que quer fazer com ele e se perde em uma trama insossa, cheia de problemas de ritmo e com escolhas esquisitas em relação à mensagem que quer passar.


Nota: 5/10

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