segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Crítica - Gente Bonita

Análise Gente Bonita


Review Gente Bonita
Apesar de ser constantemente tratado como uma festa de rua, nos últimos anos o carnaval de Salvador viu crescer cada vez mais o número e o tamanho dos camarotes privados, que comportam cada vez mais pessoas. Este Gente Bonita tenta justamente compreender a lógica desses espaços e de seus frequentadores.

O filme é todo filmado em pau de selfie e pelos próprios personagens, que de antemão já sabiam que suas imagens iriam parar neste documentário. Como muito da visão do diretor é impressa através da montagem, o documentário assume um risco já na seleção de seus personagens, já que se eles não rendessem haveria pouco a ser mostrado. Felizmente a maioria dos sujeitos filmados trazem momentos que de fato servem para levantar as discussões que o filme se propõe, sendo o grupo de três amigas o único que não "rende" muito material interessante (talvez fosse melhor deixá-las de fora do corte final).


A montagem é inteligente ao não imprimir um julgamento direto sobre as ações dos sujeitos filmados, já que isso poderia soar manipulativo, deixando para que o público analise a partir de seus próprios critérios se aquelas pessoas são bacanas, patéticas, engraçadas ou desprezíveis. Essa confiança em seu espectador e latitude dada a ele é algo que o diretor já tinha trabalhado em seu curta Interdito e funciona bem aqui, ajudando a passar as ideias do filme de modo orgânico sem parecer que o filme está puxando a sua mão e te direciona para uma única direção específica.

As imagens captadas pelos personagens dentro dos camarotes em geral mostram muito pouco do carnaval de Salvador. Ao invés disso vemos muitos espaços fechados, com luzes de boate, música eletrônica e praças de alimentação. São ambientes genéricos, sem personalidade, aquelas pessoas poderiam estar em qualquer lugar do mundo, em qualquer festa e não no maior "carnaval de rua do mundo". A rua é muito pouco vista, os trios também. Se o carnaval, que deveria ser o principal interesse das pessoas que vão para camarotes de carnaval, fica em segundo plano, então qual é o atrativo real desses camarotes?

No início do filme muitos personagens se referem à ida aos camarotes como um "sonho" ou como algo se preparam o ano inteiro, mas chegando lá pouco do carnaval de rua é visto ou vivenciado. É possível que aquilo que desejam não é a festa, mas o sentimento de prestígio e pertencimento a um ambiente associado com a elite financeira urbana, de estar em um "lugar selecionado, com gente bonita e diferenciada". Inclusive, em um dos poucos momentos em que os personagens estão na rua durante o carnaval, vemos os foliões "pipoca" (aqueles que não estão em camarotes ou dentro dos blocos de rua) ensanduichados entre as cordas dos blocos e os muros dos camarotes. O atrativo dos camarotes mais parece a imagem de poder e status social associada a eles, do que o acesso que eles proporcionam à festa.

A ideia do ambiente carnavalesco soteropolitano como um local de disputas de poder e de classe é bem simbolizada em uma cena em que dentro do camarote começa a tocar o funk Eu Só Quero é Ser Feliz e ver aquelas pessoas cantarem em voz alta os versos "e ter a consciência que o pobre tem seu lugar" ganha outra conotação. Se na canção a ideia é o empoderamento e autoafirmação, ao ouvirmos aquilo sair da boca daquelas pessoas dentro daquele espaço exclusivo e excludente parece mais um  pedido ou endosso de estratificação social.

As disputas não são apenas de classe, mas de gênero, já que o espaço do carnaval parece naturalizar o assédio e muitos dos sujeitos filmados parecem não ver problema (e inclusive encorajam uns aos outros) em abordar mulheres de modo agressivo, puxando-as contra a vontade e tentando beijá-las mesmo depois de repetidos "não". Há uma cena emblemática nesse sentido que é quando uma das personagens caminha por uma parte mais cheia do camarote e vemos vários braços emergindo da multidão tentando agarrá-la enquanto ela faz uma expressão de aborrecimento ao tentar desviar deles. Se o diretor colocasse uma música de suspense ou efeitos sonoros de urros e grunhidos, poderíamos acreditar estar vendo um filme de zumbis ou de terror.

Deste modo, Gente Bonita se mostra um interessante estudo sobre as forças em disputa em alguns espaços do carnaval de Salvador e é esperto para entender a complexidade da questão, evitando respostas absolutas ou definitivas e permitindo que sua audiência tire suas próprias conclusões.


Nota: 8/10 

Este texto faz parte de nossa cobertura do XII Panorama Internacional Coisa de Cinema

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