Apesar de ser constantemente
tratado como uma festa de rua, nos últimos anos o carnaval de Salvador viu
crescer cada vez mais o número e o tamanho dos camarotes privados, que
comportam cada vez mais pessoas. Este Gente
Bonita tenta justamente compreender a lógica desses espaços e de seus
frequentadores.
O filme é todo
filmado em pau de selfie e pelos
próprios personagens, que de antemão já sabiam que suas imagens iriam parar
neste documentário. Como muito da visão do diretor é impressa através da
montagem, o documentário assume um risco já na seleção de seus personagens, já
que se eles não rendessem haveria pouco a ser mostrado. Felizmente a maioria
dos sujeitos filmados trazem momentos que de fato servem para levantar as discussões
que o filme se propõe, sendo o grupo de três amigas o único que não
"rende" muito material interessante (talvez fosse melhor deixá-las de
fora do corte final).
A montagem é
inteligente ao não imprimir um julgamento direto sobre as ações dos sujeitos
filmados, já que isso poderia soar manipulativo, deixando para que o público
analise a partir de seus próprios critérios se aquelas pessoas são bacanas,
patéticas, engraçadas ou desprezíveis. Essa confiança em seu espectador e
latitude dada a ele é algo que o diretor já tinha trabalhado em seu curta Interdito e funciona bem aqui, ajudando
a passar as ideias do filme de modo orgânico sem parecer que o filme está
puxando a sua mão e te direciona para uma única direção específica.
As imagens
captadas pelos personagens dentro dos camarotes em geral mostram muito pouco do
carnaval de Salvador. Ao invés disso vemos muitos espaços fechados, com luzes
de boate, música eletrônica e praças de alimentação. São ambientes genéricos,
sem personalidade, aquelas pessoas poderiam estar em qualquer lugar do mundo,
em qualquer festa e não no maior "carnaval de rua do mundo". A rua é
muito pouco vista, os trios também. Se o carnaval, que deveria ser o principal
interesse das pessoas que vão para camarotes de carnaval, fica em segundo
plano, então qual é o atrativo real desses camarotes?
No início do
filme muitos personagens se referem à ida aos camarotes como um
"sonho" ou como algo se preparam o ano inteiro, mas chegando lá pouco
do carnaval de rua é visto ou vivenciado. É possível que aquilo que desejam não
é a festa, mas o sentimento de prestígio e pertencimento a um ambiente
associado com a elite financeira urbana, de estar em um "lugar
selecionado, com gente bonita e diferenciada". Inclusive, em um dos poucos
momentos em que os personagens estão na rua durante o carnaval, vemos os
foliões "pipoca" (aqueles que não estão em camarotes ou dentro dos
blocos de rua) ensanduichados entre as cordas dos blocos e os muros dos
camarotes. O atrativo dos camarotes mais parece a imagem de poder e status social associada a eles, do que o
acesso que eles proporcionam à festa.
A ideia do
ambiente carnavalesco soteropolitano como um local de disputas de poder e de
classe é bem simbolizada em uma cena em que dentro do camarote começa a tocar o
funk Eu Só Quero é Ser Feliz e ver
aquelas pessoas cantarem em voz alta os versos "e ter a consciência que o pobre tem seu lugar" ganha outra
conotação. Se na canção a ideia é o empoderamento e autoafirmação, ao ouvirmos
aquilo sair da boca daquelas pessoas dentro daquele espaço exclusivo e
excludente parece mais um pedido ou
endosso de estratificação social.
As disputas
não são apenas de classe, mas de gênero, já que o espaço do carnaval parece
naturalizar o assédio e muitos dos sujeitos filmados parecem não ver problema
(e inclusive encorajam uns aos outros) em abordar mulheres de modo agressivo,
puxando-as contra a vontade e tentando beijá-las mesmo depois de repetidos
"não". Há uma cena emblemática nesse sentido que é quando uma das personagens
caminha por uma parte mais cheia do camarote e vemos vários braços emergindo da
multidão tentando agarrá-la enquanto ela faz uma expressão de aborrecimento ao
tentar desviar deles. Se o diretor colocasse uma música de suspense ou efeitos
sonoros de urros e grunhidos, poderíamos acreditar estar vendo um filme de
zumbis ou de terror.
Deste modo, Gente Bonita se mostra um interessante
estudo sobre as forças em disputa em alguns espaços do carnaval de Salvador e é
esperto para entender a complexidade da questão, evitando respostas absolutas
ou definitivas e permitindo que sua audiência tire suas próprias conclusões.
Nota: 8/10
Este texto faz parte de nossa cobertura do XII Panorama Internacional Coisa de Cinema
Nenhum comentário:
Postar um comentário