quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Crítica - Martírio

Análise Martírio


Resenha Martírio
Depois de denunciar o massacre às populações indígenas de Rondônia em Corumbiara (2014), o indigenista Vincent Carelli trata neste Martírio da situação dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que ganharam o noticiário nacional depois de publicarem uma carta aberta falando que só deixariam suas terras depois de mortos. Assim como em seu filme anterior, Martírio mostra como o Estado, com o apoio de determinados setores da população, sistematicamente marginaliza e contribui para o extermínio dessas populações. Se visto ao lado de Corumbiara, mostra como isso é algo que atinge praticamente todas as populações indígenas do país.

O filme vai didaticamente mostrando como a questão dos Guarani-Kaiowá vem desde o fim da Guerra do Paraguai, quando suas terras foram anexadas ao Brasil e tratadas pelo Estado brasileiro como devolutas (ao invés de território indígena), sendo passada a pessoas de posses para a atividade agrícola. A partir daí, os indígenas se tornaram uma espécie de "inconveniente", sendo jogados de um lado para o outro em acampamentos que ficavam distantes de sua terra de origem enquanto o governo tentava "civilizá-los".

Os indígenas, portanto, são colocados em um desconfortável "entrelugar", sendo obrigados a fazer parte de um país que não os quer (afinal suas terras ficavam pertenciam originalmente ao Paraguai), recebendo o estatuto de cidadão brasileiro ao mesmo tempo em que seus diretos básicos de cidadãos são negados. Contrapondo as imagens de casebres improvisados de madeira à beira da estrada com as opulentas fazendas de soja e suas máquinas de colheita, o filme mostra o quão desigual é a situação dessas populações, acusadas pelos fazendeiros locais de "viverem nababescamente", quando na verdade residem sob condições precárias.

Utilizando imagens de arquivo e matérias jornalísticas, o documentário vai mostrando o esforço feito ao longo da história para tornar essas populações invisíveis e varrê-las dos registros, ações que até hoje dificultam que eles revejam suas terras. É justamente esse apagamento que dá à truculenta bancada ruralista do legislativo brasileiro os argumentos para deslegitimar a luta dos indígenas, a quem se referem como "índios falsos" e "índio paraguaios" e acusam ONGs e antropólogos indigenistas de "inventarem índios" (como se seus trabalhos não seguissem um rigoroso método científico) quando tudo que eles fazem é tentar reconstruir um registro que foi apagado, justamente para dar lugar à ascensão do grande agronegócio. Mostra também como é construída a retórica de demonização dessas populações, pegando momentos de enfrentamento e resistência e enquadrando-os como ataques, concebendo-os como "selvagens violentos", sendo que mesmo quando se comportam de modo verdadeiramente agressivo, o fazem em reação às violências presentes e também passadas que sofreram.

Apesar de construir a situação dessas populações como um constante estado de opressão, o filme consegue criar momentos de grande beleza ao mostrar os rituais daquele povo e suas tentativas de levarem uma vida normal, mesmo com homens armados literalmente às suas portas. Essas cenas são importantes não apenas para nos fornecer um respiro à sensação de pessimismo e impotência que toma conta conforme percebemos a imensidão do aparato financeiro e estatal que enfrentam, mas também para nos lembrar que eles são pessoas como nós, que querem apenas viver em paz sendo quem são, livres de perseguição ou preconceito.

Se há um problema, no entanto, é o fato de por vezes ser redundante na construção de sua argumentação, muitas vezes retornando a pontos já desenvolvidos de maneira satisfatória apenas para reiterá-los, mas sem acrescentar muito ao que o próprio filme já desenvolveu antes. Também se alonga demais na reprodução de sessões parlamentares e encontros de lobistas do agronegócio. Entendo porque aquelas imagens e falas estão no filme e elas são realmente importantes para demonstrar como os opositores dos indígenas não tem o menor interesse no diálogo e na resolução pacífica, ativamente perseguindo o extermínio e negação de direitos dessas populações, como também revela toda a sorte de ódio e preconceitos arraigados naquelas pessoas.

Por outro lado, as muitas falas longas e sem cortes de parlamentares e lobistas berrando toda sorte de absurdos e ameaças soa excessiva, já que duas ou três falas dessas já validariam o que o filme deseja passar, mas toda vez que achamos que a narrativa irá seguir adiante, ele nos dá mais e mais discursos, que, embora claramente usados para gerar desconforto, tornam o filme desnecessariamente longo (tem mais de duas horas e meia), quando poderia ser mais sintético no uso dessas imagens de arquivo.

Isso, no entanto, não diminui o impacto da contundente denúncia feita por Martírio, que revela de maneira consistente a repressão e extermínio das populações indígenas e do pouco que é feito pela sociedade e Estado para reverter esse quadro.


Nota: 9/10

Este texto faz parte da nossa cobertura do XII Panorama Internacional Coisa de Cinema

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