O princípio lógico conhecido como
"Navalha de Occam", muitas vezes referido como "princípio da
parcimônia", determina que as entidades não devem ser multiplicadas além
da necessidade. Trocando em miúdos: a explicação mais simples e direta tende a
ser a melhor. Este Beleza Oculta,
porém, ignora qualquer lógica ou parcimônia e pega uma história relativamente
simples sobre superação de luto e tenta transformar em algo muito mais
complicado do que deveria ser, criando uma trama rocambolesca que demora a
engrenar e mais prejudica a mensagem desejada do que ajuda. Outro princípio
filosófico que o filme parece ignorar (e sequer problematiza) é a noção de que
não é possível fazer o bem a alguém ao lhe fazer mal. Platão disse isso em seu
seminal A República e, embora seja
possível colocar isso em questão sob perspectivas mais utilitaristas, o filme
ignora por completo que o plano de certos personagens para o protagonista
interpretado por Will Smith é simplesmente vil e desprezível (da mesma forma
que o recente Passageiros insiste em
tratar o protagonista vivido por Chris Pratt como herói, ainda que suas ações
sejam condenáveis).
A trama segue Howard (Will Smith)
um homem devastado pela perda da filha pequena anos atrás. Ele se afasta do
mundo em seu luto, deixando de lado inclusive a agência de publicidade da qual
é dono. Em seu tempo livre faz mosaicos com dominós e escreve cartas cheias de
raiva e amargura para o Tempo, o Amor e a Morte. Enquanto isso, seus negócios
afundam e seus três sócios, Whit (Edward Norton), Claire (Kate Winslet) e Simon
(Michael Peña), pensam em vender a agência, mas não podem fazer isso sem a
aprovação de Howard, que é o sócio majoritário e se recusa a ouvir a proposta.
Os três contratam uma detetive para investigar Howard na esperança que ela
encontre evidências que provem que Howard está mentalmente incapaz, mas tudo
que ela encontra são as cartas. Whit então resolve contratar um grupo de atores
para que eles se passem por Tempo, Amor e Morte e interajam com Walt para que
possam filmá-lo e posteriormente remover digitalmente os atores e convencer a
diretoria de que ele está louco.
Ufa, perceberam quantas idas e
vindas e quanta informação eu tive de dar apenas para explicar o ponto inicial
do conflito da trama? Ao invés de dar tantas voltas e criar toda essa estrutura
rocambolesca para justificar sua premissa o filme poderia simplesmente adotar o
realismo fantástico e fazer essas figuras aparecerem diante de Howard (tal qual
acontece com os três fantasmas de Um
Conto de Natal). Seria mais simples, direto, menos cansativo (às vezes
menos é mais) e daria mais tempo para que a narrativa desenvolvesse suas ideias
ao invés de reduzi-las em frases de efeito genéricas que parecem dizer muito,
mas são terrivelmente vagas.
Isso já começa nos primeiros
minutos quando Howard lança a indagação "qual é o seu porque?". Uma
frase que parece profunda e dotada de significado, mas que não tem efetivamente
nada a dizer. Ela podia ser estruturada como uma simples e direta "o que
lhe motiva?", mas o filme prefere adotar uma formulação pouco usual e específica
para parecer que está dizendo algo novo e inteligente, quando não passa de uma
fala banal e clichê. Ao longo da fita os diálogos são tomados por esse tipo de
platitude pseudointelectual no qual coisas simples como "o tempo é uma
dádiva" e "o amor está em tudo" são ditas de maneira
desnecessariamente pomposa e cheia de um senso delirante de autoimportância
como se os responsáveis pelo filme estivessem nos revelando uma verdade
absoluta e genial recém descoberta por eles. O próprio termo "beleza
oculta" no título é repetido cerca de três ou quatro vezes como uma grande
revelação, com direito a uma música solene toda vez que essas palavras são
ditas, mas a despeito da absoluta certeza e convicção que o filme tem na
importância dessas palavras, é mais um neologismo vago (para falar da beleza ao
nosso redor que muitas vezes ignoramos, algo que o ótimo Beleza Americana construiu com muito mais clareza e sensibilidade)
que parece uma grande sacada, mas apenas repete ideias manjadas.
O pior de tudo é que em alguns
momentos o filme chega a criar contradições em sua própria mensagem. Quando uma
personagem indaga a outro sobre ele ter falado algo diametralmente oposto ao
que disse durante o restante do filme o sujeito simplesmente diz: "aquilo
tudo era bobagem", o que faz tudo que ouvimos antes parecer uma imensa
perda de tempo (e tempo é uma dádiva que precisa ser aproveitada ao máximo, o
próprio filme diz isso).
Para além da empáfia dos
diálogos, há também a questão de como trata a conduta dos três sócios. O que
eles fazem com Howard é basicamente gaslighting (e uma das personagens chega a dizer isso), uma tentativa de fazer
alguém duvidar da própria memória ou sanidade que é considerada uma forma de
abuso psicológico. O filme, no entanto, nunca enquadra a conduta dos sócios
como abusiva, tampouco demonstra qualquer repúdio pela conduta deles, muito
pelo contrário. A trama ativamente tenta nos compadecer pelos três, dando a
cada um seu próprio conflito pessoal (sim, o filme ainda tenta dar arcos
individuais aos coadjuvantes, como se a trama já não estivesse inchada), aos
quais é difícil torcer ou aderir, dado o comportamento abusivo para com o
amigo. Os três inclusive são "premiados" pela sua conduta
questionável, já que eles não só efetivam a venda da empresa, como a epifania
obtida por Howard no contato com as três entidades acaba também ajudando-os a
resolver seus próprios problemas pessoais. Moral da história: praticar abuso
psicológico faz bem para o bolso e para a alma.
Diante de um texto tão raso e lamentavelmente equivocado chego a me
perguntar como um elenco tão competente formado por gente como Will Smith,
Edward Norton, Kate Winslet, Helen Mirren e Naomie Harris, foi atraído para o
projeto. Dá tristeza ver esses atores desperdiçando seu talento, dando o melhor
que podem, em especial Will Smith em sua composição de um homem devastado pela
perda e incapacidade de lidar com ela, e terem seus esforços soterrados pelas
inaptidões do roteiro e da direção. A trama ainda tenta surpreender ao jogar
displicentemente algumas reviravoltas no final, uma envolvendo a identidade da
líder do grupo de terapia e outra relacionada aos três atores, que não fazem a
menor diferença no desenlace das coisas, já que os resultados seriam os mesmos
independente daquelas revelações. É aquele tipo de final surpresa feito para
convencer o público de que viu algo complexo e inteligente, quando não passa de
um expediente manipulativo.
Algumas escolhas estéticas também não fazem muito sentido, como a opção
de tirar o foco dos rostos dos três atores conforme eles se aproximam de Howard
para desempenhar suas performances. A ideia parece ser registrar essas
entidades "se manifestando" diante do personagem e de nós, mas como
já sabemos que eles são e como são seus rostos, não há qualquer surpresa ou suspense
quando o diretor desfoca e vai aos poucos restituindo o foco aos seus rostos.
Do mesmo modo, colocar Howard para construir longos castelos de dominós é uma
metáfora visual óbvia sobre a interconectividade e interdependência das coisas
(a revelação de que ele fazia isso com a filha não torna menos clichê). O filme
ainda apresenta algumas inconsistências em termos de set design, com algumas tomadas externas mostrando ruas totalmente
tomadas por decorações natalinas e logo a seguir os vemos em ruas sem absolutamente
nenhum indicativo que é Natal, como se do nada os cidadãos da cidade tivessem
desistido de decorar suas casas e negócios.
Beleza Oculta acaba desperdiçando uma boa premissa e um
ótimo elenco em uma trama que se complica mais do que deveria, com um roteiro
que se acha mais esperto do que realmente é, alheio aos problemas morais que
suscita e uma direção igualmente equivocada. O recente Manchester à Beira-Mar constrói uma reflexão muito mais competente,
delicada e complexa sobre luto e perda do que essa bagunça pedante que se vê
como um bastião de iluminação, mas não passa de autoajuda barata.
Nota: 2/10
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2 comentários:
Eu gostei de sua crítica, eu acho que é muito completa. Porém, pórem devo reconhecer que o filme Beleza Oculta foi um bom filme de drama. A verdade que foi uma surpresa pra mim, já que foi uma historia de drama muito criativa que usou elementos inovadores. A forma em que vão metendo os personagens e contando suas historias é única. Também teve protagonistas sólidos e um roteiro diferente. Eu acho que o filme foi muito bom.
Que bom que você gostou Julieta. Lamentavelmente não funcionou pra mim.
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