A música parece um tema caro ao
diretor Damien Chazelle. Ele já tinha feito um musical com temas de jazz em seu
primeiro longa, Guy and Madeline on a
Park Bench (2009), originalmente feito para ser seu trabalho de conclusão
de curso em Harvard. Seu segundo longa, o excelente Whiplash: Em Busca da Perfeição (2015), tratava da busca por um
baterista em ser o melhor e a relação abusiva/doentia que tinha com um
professor. Agora em La La Land: Cantando
Estações ele entra no universo do musical clássico hollywoodiano e não
apenas celebra seu legado, como tenta também passá-lo em revisão sob um olhar
contemporâneo (e um conhecimento quase enciclopédico sobre essa filmografia).
A trama segue a aspirante a atriz
Mia (Emma Stone) e o pianista de jazz Sebastian (Ryan Gosling) e as idas e
vindas de sua relação ao longo de um ano na cidade de Los Angeles. É uma trama
típica de musical romântico, um casal de personalidades distintas que tem algo
de importante a ensinar um para o outro, números musicais guiando as ações e
desenvolvimentos da trama, a busca pelo sonho de sucesso e reconhecimento em
sua arte, tudo está ali presente. Ao mesmo tempo que remete a tempos mais
simples, românticos e ingênuos, mas ao mesmo tempo, o filme vai dando pistas
que não é tão ingênuo e idealizado quanto parece.
A relação entre os dois
protagonistas é mais "pé no chão" do que boa parte desses filmes de
outrora, com desentendimentos, discussões e discordâncias que pouco a pouco
criam uma distância relativa entre a perspectiva antiga de relacionamentos no
qual tudo dava certo e felizes para sempre era algo lógico, inevitável e
facilmente resolvido em algumas canções, uma melancolia que lembra muito o frânces Os Guarda-Chuvas do Amor (1964). Isso também se reflete em alguns
números musicais, à exemplo da primeira canção que Mia e Sebastian dividem
juntos em um mirante sobre o crepúsculo de Los Angeles. O cenário e os passos
da dança remetem demais para ser mera coincidência ao número do parque entre
Fred Astaire e Cyd Charisse no clássico A
Roda da Fortuna (1953). Se na performance de Astaire e Charisse o canto e
dança serviam construir o enlace romântico entre os dois protagonistas que
terminavam o número deixando o local juntos, aqui o a letra da música e o
desenvolvimento da cena são feitos para que os dois digam que não tem afinidade
e que nada irá acontecer entre eles, tanto que termina com cada um seguindo
caminhos separados. Parece simplesmente uma leve brincadeira com as convenções
e uma tentativa de fornecer um obstáculo aos dois, mas isso é quase uma antevisão
de coisas por vir, principalmente se colocadas ao lado do número que encerra o
filme.
O mesmo pode ser dito do número
musical de Mia com suas amigas dentro de seu apartamento se preparando para ir
a uma festa, ansiando por encontrar alguém que lhes abra as portas nos show business, algo similar ao que acontece em Cavadoras de Ouro (1933), embora também possa ser identificado em alguns outros musicais, quando as três protagonistas também se preparam para tentar a sorte em festas da "alta sociedade" na esperança de encontrar alguém que financie seu espetáculo (e uma delas até se apaixona por um galanteador pianista que mora ao lado). Se em Cavadoras de Ouro (1933) as personagens de fato encontram alguém
que lhes ajude a alcançar a fama e a financiar seu espetáculo, aqui Mia e suas amigas não conquistam
absolutamente nada, com Mia tendo seu carro rebocado e tendo que caminhar
sozinha por Los Angeles.
O arco de Sebastian parece
dialogar com o do protagonista do seminal O
Cantor de Jazz (1927), alguém dividido entre uma música mais
"tradicional" e outra mais "moderna". Se no filme de 1927 o
protagonista ao fim conseguia ser bem sucedido em ambas as frentes, Sebastian
fracassa em ambos. Ele inicialmente não consegue convencer ninguém de que sua
abordagem purista e tradicionalista do jazz
pode dar certo, como também não demonstra estar contente ao se juntar a uma
banda mais descolada, com toques de música eletrônica e tudo mais. Em seu
primeiro show com a nova banda, ao invés da impressão de que finalmente o
protagonista vai ter sucesso e que tudo vai dar certo, que normalmente era
produzida por esse tipo de número nos musicais de outrora, dá lugar ao claro
desconforto de que Sebastian "perdeu sua essência" sendo literalmente
ofuscado por fogos de artifício e pelos dançarinos da banda. Mesmo com todas
essas aproximações e afastamentos do cânone, o filme ainda cria momentos que de
fato visam ser românticos, encantadores e uma celebração de como as coisas eram
antes, como todo o segmento de Mia e Sebastian no planetário ou mesmo na doçura
do plano-detalhe das mãos de ambos se aproximando lentamente nos cinemas.
Falando nos números musicais,
eles são vibrantes, enérgicos e trazem aquele otimismo dos musicais de outrora,
ainda que aqui e ali exiba certas doses de melancolia, em especial nas canções
de Sebastian. Os planos longos e com pouquíssimos cortes evidenciam o
virtuosismo das performances de canto e dança, tal qual acontecia com os
números de Gene Kelly e Fred Astaire, vemos que são mesmo os atores ali
dançando, sapateando e ocasionalmente tocando. O número que abre o filme, feito
em uma via expressa de Los Angeles é a melhor expressão do senso de espetáculo
grandioso e virtuosismo que o filme tenta passar (e que remete às grandiosas
coreografias orquestradas por Busby Berkley), com inúmeros figurantes cantando
e dançando em meio a um engarrafamento.
Stone e Gosling são simplesmente
adoráveis como Sebastian e Mia e qualquer um que já tenha visto o bonitinho Amor à Toda Prova (2011) ou mesmo o
péssimo (não por culpa dos dois) Caça aos Gângsteres (2013)
sabe que eles tem uma ótima química juntos. Stone é a típica mocinha sonhadora,
que espera sua grande chance para brilhar em Hollywood, mas também exibe certa
amargura sobre a quantidade de fracassos que acumula e os nãos que recebe. Já
Gosling faz de Sebastian um músico verdadeiramente apaixonado por jazz, que
quer preservar a música que tanto ama, mas ao mesmo tempo não sabe como fazê-lo
e seu apego aos cânones da música parece apenas afastá-lo do sucesso. Através
dos diálogos de Sebastian, Chazelle (que também escreveu o filme) parece
ventilar suas próprias inquietações com o filme musical e o trabalho que estava
realizando neste filme. A obra está em sua mente desde que fizera Guy and Madeline on a Park Bench, mas
nunca conseguia ninguém para bancar o filme sob o argumento de que seu produto
seria apenas uma cara peça de museu.
De certa forma, parece ter sido
benéfico que ele tenha demorado tanto para conseguir finalmente fazer esse
filme. Assim como Sebastian, parece ter entendido que a mera reprodução dos
cânones não seria suficiente para chamar a atenção, encantar e trazer de volta
algo que há muito tempo não se fazia, era preciso fazer o esforço de não apenas
olhar para o passado, mas ver o ele poderia trazer desse passado para o
presente e também para moldar o futuro. É exatamente isso que Sebastian faz ao
finalmente abrir seu clube de jazz e descobrimos que ele abandonou parte das
ideias iniciais que defendia com tanto afinco e dureza para adotar a
perspectiva oferecida por Mia, misturando o tradicional com um olhar mais
fresco e sem comprometer sua integridade artística.
Todas essas ideias são
perfeitamente resumidas e encapsuladas no excelente número que termina o filme
e remete aos longuíssimos e apoteóticos números finais de muitos musicais dos
anos de 1930, 40 e 50, como Cantando na
Chuva (1952), funcionando como uma espécie de "carta de intenção do
filme". A cena praticamente nos diz "se fossemos fazer um filme
musical como antigamente, era isso que seria feito e era isso que aconteceria,
mas esse não é um filme de antigamente, nem pode ser".
Chazelle olha para os filmes do
passado e reconhece o valor e a importância do virtuosismo das performances, do
romantismo, de ter um sonho mesmo que aparentemente impossível e correr atrás
dele, de ser sincero consigo e fazer o que ama com paixão. Reconhece, no
entanto, que não é possível exibir a inocência de antes e crer que ao fim
conseguiremos conciliar todos os conflitos e obter tudo que queríamos como
acontece em praticamente todos os musicais hollywoodianos clássicos desde o O Cantor de Jazz (1927), quando o
personagem é colocado ao fim para escolher entre uma realização profissional e
uma pessoal e acaba arrumando um jeito de conciliar as duas coisas. Esse filme,
porém, é inteligente o bastante para saber que nem sempre se consegue tudo, que
escolhas precisam ser feitas, que prioridades precisam ser estabelecidas e
certas coisas precisam ser deixadas pelo caminho para que consigamos outras.
Sabe que não é possível ter a ingenuidade de outrora e que uma vez removido, o
véu da inocência não pode ser devolvido, a situação não pode retornar ao que
era e é preciso seguir adiante.
É isso que significa o aceno
entre dois personagens ao final. Um instante delicado, breve, singelo e fugaz, mas
carregado de um simbolismo poderoso. Naquele momento eles são um para o outro
algo que pertence ao passado. Eles se olham, vemos transparecer um afeto por
esse elemento do passado, há um aceno, demonstrando o reconhecimento (ou mesmo
respeito) por esse passado compartilhado, e então seguem seu rumo, porque agora
estão à frente desse passado, esse passado não volta, não pode ser recuperado e
é preciso mirar no pode estar à frente. Esse ato final dos protagonistas não se
aplica somente às suas próprias jornadas, mas também ao diálogo que o filme
estabelece com o gênero musical. Uma síntese revisionista afetuosa e singela
que não é simples de se fazer e rara de se presenciar. A última vez que um dos
gêneros mais tradicionais e basilares do cinema hollywoodiano esteve tão
competentemente posto em revista foi o western
em Os Imperdoáveis (1992).
La La Land: Cantando Estações consegue ser tradicional sem ser
tradicionalista, ser nostálgico e ainda assim se desapegar do passado, ser
romântico sem ter tolo ou ingênuo. É uma carta de amor ao passado cheia de
paixão, mas que consegue direcionar seus olhos para o que está à frente.
Nota: 10/10
Trailer
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