segunda-feira, 6 de março de 2017

Crítica - Fome de Poder

Análise Fome de Poder


Review Fome de Poder
A rede de fast food McDonald's é talvez uma das maiores multinacionais do mundo e foi a precursora de todas as grandes franquias de comida rápida que surgiram posteriormente. Contar a história da ascensão da empresa poderia render uma boa discussão sobre o papel que ela teve em uma cultura de excesso e alimentação de baixa qualidade. Ao invés de usar o filme para pensar no legado ou mesmo questionar o modo como a franquia se construiu, o diretor John Lee Hancock (de Walt nos Bastidores de Mary Poppins e Um Sonho Possível) prefere enquadrar a trajetória de Ray Kroc meramente como uma edificante história de sucesso neste Fome de Poder e a abordagem acaba não sendo capaz de dar conta da trajetória de seus personagens.

A narrativa nos faz acompanhar Kroc (Michael Keaton), um homem de meia idade que trabalha vendendo máquinas de milk-shake. Sua sorte muda quando ele cruza o caminho dos irmãos Mac (John Carroll Lynch) e Dick (Nick Offerman) McDonald e se impressiona com o modelo de negócio da lanchonete deles, que oferece um serviço mais rápido e de melhor qualidade do que outros no ramo. Kroc propõe a eles transformar o negócio em uma franquia, prometendo tornar o McDonald's uma "instituição americana". Relutantes em colocar o negócio que criaram nas mãos de um estranho, os irmãos aceitam o acordo com Kroc, mas mantendo a palavra final sobre o que acontece nos restaurantes. Conforme a franquia cresce, fica claro que Kroc tem uma visão diferente dos irmãos McDonald sobre o que é o negócio.

Michael Keaton traz uma energia magnética para Ray Kroc, um homem disposto a fazer praticamente qualquer coisa para conseguir o que quer e que sempre acha as palavras certas para convencer seus interlocutores. O ator deixa claro a ambição desmedida do personagem e exibe uma paixão genuína pelo sucesso. Keaton também não se afasta da cretinice e oportunismo do sujeito, mas seu carisma em cena nos mantêm interessados nele mesmo quando suas ações são no mínimo questionáveis. John Carroll Lynch e Nick Offerman fazem dos McDonalds dois homens com uma visão singular do que queriam criar e preocupados acima de tudo com a qualidade do que era servido em seus restaurantes, mas sem a ambição voraz de Kroc. Por outro lado a talentosa Laura Dern é desperdiçada como a esposa do protagonista, sendo limitada ao clichê de esposa reclamona e tratada como um obstáculo e um estorvo tanto pelo personagem quanto pelo próprio filme.

O principal problema do filme é que embora não se furte a mostrar o quanto Kroc pode ser desprezível, também não o confronta quanto a sua conduta, sempre lhe dando a última palavra sobre qualquer situação. Sem contraponto, o filme mais parece uma exaltação ao egocentrismo e à frieza de Kroc, que sempre tenta levar vantagem em todas as situações, e uma validação à sua filosofia de que talento ou inteligência não importa e sim força de vontade. Afinal, Kroc não tinha nenhum talento ou insight real (isso vinha dos McDonalds) e fica perto da falência mais de uma vez se não aparecessem pessoas para ajudá-lo. Ainda assim o filme insiste em querer que o vejamos como um herói ou anti herói mesmo quando ele descaradamente passa perna nos irmãos. Sim, o filme traz uma música triste quando Mac e Dick são obrigados a remover o nome McDonald's de seu restaurante, mas as imagens são contrapostas com a narração de Ray sobre pessoas talentosas, inteligentes e estudadas fracassando. Com isso, ao invés de lamentar por eles, o filme faz parecer que eles mereceram serem passados para trás e mereceram fracassar, legitimando a desonestidade de Ray e esquecendo que ele não teria absolutamente sem a inventividade dos dois irmãos.

Do mesmo modo, quando Ray fala com eles ao telefone e diz que seria capaz de afogar um concorrente se o visse se afogar e pergunta se os irmãos fariam o mesmo, a falta de resposta dos dois parece validar a postura implacável do protagonista. O filme sequer questiona as implicações morais do discurso do personagem e pinta os irmãos como fracos e incompetentes. Tudo bem que eles de fato tem uma visão limitada acerca do negócio, mas muitas decisões deles são coerentes com a ideia do que querem fazer, como não permitir que Kroc use misturas em pó ao invés de leite e sorvete nos milk-shakes, afinal eles tem uma clara preocupação com a qualidade. O filme, no entanto, parece tomar partido somente de Ray, sempre tratando as negativas de Mac e Dick como um ato de mera oposição e burrice, ao invés de uma decisão que faz sentido para aqueles personagens.

A trama também é acrítica quanto ao legado do McDonald's e seu papel na criação de toda uma cultura que valoriza e exalta alimentos pesadamente industrializados e de baixa qualidade, que contribuíram para tornar obesidade um problema de saúde pública nos Estados Unidos. Sim, o filme mostra as origens da franquia e se passa quase todo nos anos 50 e 60, mas ele foi realizado nos dias atuais e sob um contexto no qual as franquias de fast food são constantemente questionadas sobre a qualidade dos alimentos que vendem. O próprio cinema já levantou esses questionamentos, tanto no documentário quanto na ficção, em filmes como Supersize Me: A Dieta do Palhaço (2004) ou Nação Fast Food (2006), mas o diretor John Lee Hancock só vê qualidades na trajetória do McDonald's rumo à hegemonia corporativa.

O letreiro final, que cita que sorvete e leite voltaram a ser usados pela franquia, inclusive faz parecer que houve um "retorno à forma" e que ela passou a se preocupar também com a qualidade do que oferece ao invés de pensar somente em reduzir custo como fez Kroc, sendo que sabemos que não é bem assim. É compreensível que na primeira vez que o protagonista conhece os irmãos, o restaurante e seus alimentos sejam mostrados com deslumbre e encantamento, incluindo uma tomada de uma mulher mordendo um hambúrguer em câmera lenta enquanto uma música edificante pontua a cena, afinal é preciso que entendamos o que atraiu Ray para aquilo. A questão é que conforme o filme avança não há qualquer esforço em tentar entender o que o sucesso da franquia significou para o país e seus impactos sobre ele, o filme apenas reconhece sua importância e a celebra e assim soa como um esforço meramente propagandista.

No fim Fome de Poder vale pela performance energética, apaixonada e sincera de Michael Keaton, que consegue trazer carisma a um personagem que poderia ser completamente desprezível. Sem o talento de seu protagonista, o que sobra é um relato raso, acrítico e fundamentalmente "chapa branca" (quase que publicitário), sobre a ascensão de uma das maiores multinacionais dos Estados Unidos.

Nota: 6/10


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