A rede de fast food McDonald's é talvez uma das maiores multinacionais do
mundo e foi a precursora de todas as grandes franquias de comida rápida que
surgiram posteriormente. Contar a história da ascensão da empresa poderia
render uma boa discussão sobre o papel que ela teve em uma cultura de excesso e
alimentação de baixa qualidade. Ao invés de usar o filme para pensar no legado
ou mesmo questionar o modo como a franquia se construiu, o diretor John Lee
Hancock (de Walt nos Bastidores de Mary Poppins e Um Sonho Possível)
prefere enquadrar a trajetória de Ray Kroc meramente como uma edificante
história de sucesso neste Fome de Poder
e a abordagem acaba não sendo capaz de dar conta da trajetória de seus
personagens.
A narrativa nos faz acompanhar
Kroc (Michael Keaton), um homem de meia idade que trabalha vendendo máquinas de
milk-shake. Sua sorte muda quando ele
cruza o caminho dos irmãos Mac (John Carroll Lynch) e Dick (Nick Offerman)
McDonald e se impressiona com o modelo de negócio da lanchonete deles, que
oferece um serviço mais rápido e de melhor qualidade do que outros no ramo.
Kroc propõe a eles transformar o negócio em uma franquia, prometendo tornar o
McDonald's uma "instituição americana". Relutantes em colocar o
negócio que criaram nas mãos de um estranho, os irmãos aceitam o acordo com
Kroc, mas mantendo a palavra final sobre o que acontece nos restaurantes.
Conforme a franquia cresce, fica claro que Kroc tem uma visão diferente dos
irmãos McDonald sobre o que é o negócio.
Michael Keaton traz uma energia
magnética para Ray Kroc, um homem disposto a fazer praticamente qualquer coisa
para conseguir o que quer e que sempre acha as palavras certas para convencer
seus interlocutores. O ator deixa claro a ambição desmedida do personagem e exibe
uma paixão genuína pelo sucesso. Keaton também não se afasta da cretinice e
oportunismo do sujeito, mas seu carisma em cena nos mantêm interessados nele
mesmo quando suas ações são no mínimo questionáveis. John Carroll Lynch e Nick
Offerman fazem dos McDonalds dois homens com uma visão singular do que queriam
criar e preocupados acima de tudo com a qualidade do que era servido em seus
restaurantes, mas sem a ambição voraz de Kroc. Por outro lado a talentosa Laura
Dern é desperdiçada como a esposa do protagonista, sendo limitada ao clichê de
esposa reclamona e tratada como um obstáculo e um estorvo tanto pelo personagem
quanto pelo próprio filme.
O principal problema do filme é
que embora não se furte a mostrar o quanto Kroc pode ser desprezível, também
não o confronta quanto a sua conduta, sempre lhe dando a última palavra sobre
qualquer situação. Sem contraponto, o filme mais parece uma exaltação ao egocentrismo
e à frieza de Kroc, que sempre tenta levar vantagem em todas as situações, e
uma validação à sua filosofia de que talento ou inteligência não importa e sim
força de vontade. Afinal, Kroc não tinha nenhum talento ou insight real (isso vinha dos McDonalds) e fica perto da falência
mais de uma vez se não aparecessem pessoas para ajudá-lo. Ainda assim o filme
insiste em querer que o vejamos como um herói ou anti herói mesmo quando ele
descaradamente passa perna nos irmãos. Sim, o filme traz uma música triste
quando Mac e Dick são obrigados a remover o nome McDonald's de seu restaurante,
mas as imagens são contrapostas com a narração de Ray sobre pessoas talentosas,
inteligentes e estudadas fracassando. Com isso, ao invés de lamentar por eles,
o filme faz parecer que eles mereceram serem passados para trás e mereceram
fracassar, legitimando a desonestidade de Ray e esquecendo que ele não teria
absolutamente sem a inventividade dos dois irmãos.
Do mesmo modo, quando Ray fala
com eles ao telefone e diz que seria capaz de afogar um concorrente se o visse
se afogar e pergunta se os irmãos fariam o mesmo, a falta de resposta dos dois
parece validar a postura implacável do protagonista. O filme sequer questiona
as implicações morais do discurso do personagem e pinta os irmãos como fracos e
incompetentes. Tudo bem que eles de fato tem uma visão limitada acerca do
negócio, mas muitas decisões deles são coerentes com a ideia do que querem
fazer, como não permitir que Kroc use misturas em pó ao invés de leite e sorvete
nos milk-shakes, afinal eles tem uma
clara preocupação com a qualidade. O filme, no entanto, parece tomar partido
somente de Ray, sempre tratando as negativas de Mac e Dick como um ato de mera
oposição e burrice, ao invés de uma decisão que faz sentido para aqueles
personagens.
A trama também é acrítica quanto
ao legado do McDonald's e seu papel na criação de toda uma cultura que valoriza
e exalta alimentos pesadamente industrializados e de baixa qualidade, que
contribuíram para tornar obesidade um problema de saúde pública nos Estados
Unidos. Sim, o filme mostra as origens da franquia e se passa quase todo nos
anos 50 e 60, mas ele foi realizado nos dias atuais e sob um contexto no qual
as franquias de fast food são
constantemente questionadas sobre a qualidade dos alimentos que vendem. O
próprio cinema já levantou esses questionamentos, tanto no documentário quanto
na ficção, em filmes como Supersize Me: A
Dieta do Palhaço (2004) ou Nação Fast
Food (2006), mas o diretor John Lee Hancock só vê qualidades na trajetória
do McDonald's rumo à hegemonia corporativa.
O letreiro final, que cita que
sorvete e leite voltaram a ser usados pela franquia, inclusive faz parecer que
houve um "retorno à forma" e que ela passou a se preocupar também com
a qualidade do que oferece ao invés de pensar somente em reduzir custo como fez
Kroc, sendo que sabemos que não é bem assim. É compreensível que na primeira
vez que o protagonista conhece os irmãos, o restaurante e seus alimentos sejam
mostrados com deslumbre e encantamento, incluindo uma tomada de uma mulher
mordendo um hambúrguer em câmera lenta enquanto uma música edificante pontua a
cena, afinal é preciso que entendamos o que atraiu Ray para aquilo. A questão é
que conforme o filme avança não há qualquer esforço em tentar entender o que o
sucesso da franquia significou para o país e seus impactos sobre ele, o filme
apenas reconhece sua importância e a celebra e assim soa como um esforço
meramente propagandista.
No fim Fome de Poder vale pela performance energética, apaixonada e
sincera de Michael Keaton, que consegue trazer carisma a um personagem que
poderia ser completamente desprezível. Sem o talento de seu protagonista, o que
sobra é um relato raso, acrítico e fundamentalmente "chapa branca"
(quase que publicitário), sobre a ascensão de uma das maiores multinacionais
dos Estados Unidos.
Nota: 6/10
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