terça-feira, 7 de março de 2017

Crítica - Silêncio

Análise Silêncio


Review Silêncio
O que significa exatamente ter fé? Na superfície parece uma questão simples, mas se tentarmos responder com seriedade, veremos que não parece tão fácil. Afinal, até onde a fé deve ir? O que se pode ou se deve suportar em nome dessa fé? Existem limites que não podem ser extrapolados? Se eu creio em algo e isso é para mim uma verdade, eu tenho o direito de impor isso a outras pessoas? Essas questões sobre fé, martírio e imposição de crenças estão no centro deste Silêncio, novo filme de Martin Scorsese baseado no célebre romance de Shusaku Endo.

A trama se passa no século XVII quando as missões jesuítas no Japão começaram a sofrer oposição do governo japonês e os católicos foram mortos e perseguidos. Dois padres jesuítas portugueses radicados em Macau recebem notícias de que o principal missionário no país, Padre Ferreira (Liam Neeson), renunciou Cristo e tornou-se um apóstata, vivendo em meio aos japoneses como um deles. Convencidos de que algo grave pode ter acontecido com Ferreira, os padres Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver) vão ao Japão para tentar encontrá-lo e para manterem a igreja viva no país. Chegando lá, encontram um oposição tão forte que passam a questionar a própria fé, diante do silêncio divino frente ao sofrimento de seus fieis e seu clamor por salvação.


O que primeiro chama atenção é a quase que completa ausência de música. Praticamente não há música dentro ou fora do universo filme e essa ausência é evidenciada pelo constante uso de ruídos e sons ambientes que dão a impressão de um vazio, um contínuo "silêncio". Se a música extra diegética (que acontece fora do universo do filme) muitas vezes é usada para comentar, guiar, sobrepor ou amplificar nossas impressões do que acontece em cena, a ausência dela deixa claro que não há nenhuma "entidade superior" (acima do universo fílmico) guiando nossa jornada por aquele universo. Assim, a escolha de retirar a música provavelmente tem o objetivo de reproduzir o "silêncio divino" experimentado pelos dois protagonistas do filme. Assim como eles não ouvem nada em resposta às suas preces, o público também não ouve nada que possa lhe guiar em relação a como deve se sentir em relação ao que vê, estando tão desgarrado quanto os padres portugueses.

A fotografia investe em paisagens cinzentas, cobertas por uma névoa quase impenetrável, ressaltando o movimento incessante das ondas, as formações rochosas e as matas fechadas. A paisagem japonesa, portanto, é exibida como um ambiente hostil, infrutífero e difícil. Essa construção remete a uma fala do "inquisidor" Inoue (Issei Ogata) para Rodrigues, dizendo-lhe que embora o cristianismo cresça e floresça em outros lugares, o Japão é como um pântano para aquela religião e não oferece condições naturais para prosperar.

O conflito entre a cultura local e a tentativa da Igreja Católica de impor o cristianismo naquele país é melhor explicitado na cena em que Rodrigues finalmente encontra Ferreira e este lhe explica (de maneira bastante convincente, diga-se de passagem) como a visão de mundo dos japoneses torna difícil comportar a ideia de cristianismo tal como era e as "gambiarras" que ele, enquanto missionário, teve que fazer para tentar convencer os locais a entendê-lo.

O filme tem o cuidado de não tornar simplórias as questões levantadas pela narrativa e tenta evitar maniqueísmos fáceis que enquadrem um lado como herói ou vilão. Os cristãos estão realmente sendo perseguidos, mas também estão forçosamente impondo sua presença em um lugar que não pediu por ela e desejam interferir e alterar em uma cultura secular simplesmente porque se acham superiores e mais civilizados que ela. Por outro lado, os japoneses demonstram pouca capacidade de aceitar as diferenças e agem com brutalidade contra os opositores, mas ao mesmo tempo estão simplesmente tentando resistir ao seu modo ao que é na prática uma ocupação e dominação estrangeira em seu país. Tem alguns problemas de ritmo ao longo do percurso, em especial todo o segmento em que Rodrigues é capturado e obrigado a ver os locais sendo torturados se estende um pouco demais (embora o filme não chegue a adotar uma postura fetichista em relação à violência que exibe), assim como o longuíssimo epílogo.

Tanto Andrew Garfield quanto Adam Driver são competentes em evocar o crescente desamparo dos padres. Eles chegam cheios de confiança e certeza na retidão de sua tarefa, mas conforme veem a população sofrer e morrer para glorificar a eles e sua igreja, começam a se questionar se há mesmo um objetivo naquilo tudo e qual função aqueles sacrifícios desempenham em sua missão cristã. Do mesmo modo, Liam Neeson faz de Ferreira um homem resignado em seu fracasso, que deixou de crer na "missão civilizatória" da igreja, embora sutilmente dê indicativos de que não abandonou completamente sua fé, apenas escolheu mantê-la como algo íntimo.

No fim, essa parece ser a principal reflexão do filme sobre a fé. A de que o importante é encontrar nela paz e conforto existencial, não importando se você é cristão ou budista. É algo de foro íntimo, pessoal e subjetivo, algo ao qual recorremos para dar sentido às nossas vidas e calar os silêncios de nossas existências. Só porque não a impomos aos outros ou não a professamos como uma verdade superior a qualquer outra não significa que ela nos seja menos importante.


Nota: 8/10

Trailer

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