Quando nos tornamos adultos
eventualmente nos damos conta de que há algo em nossa conduta ou visão de mundo
que reproduz um comportamento que víamos em nossos pais e nos incomodava quando
criança. É provável que ao longo de nossa vida adulta tenhamos aquele momento
de surpresa no qual dizemos a nós mesmos "nossa, estou falando/agindo
igualzinho a meu pai/minha mãe". Para o bem e para o mal nossa relação com
nossos pais impactam no resto de nossas vidas e é exatamente sobre isso que
trata este Como Nossos Pais, novo
filme da diretora Laís Bodanzky (Bicho de
Sete Cabeças, Chega de Saudade).
A trama é centrada em Rosa (Maria
Ribeiro), uma mulher com problemas no casamento que descobre, durante uma
discussão com a mãe, que ela é fruto de um ato de traição da mãe, Clarice
(Clarisse Abujamra), com outro homem. A revelação, somada à crescente crise em
seu casamento com Dado (Paulo Vilhena), a faz questionar os rumos de sua vida e
sua própria identidade.
Há um claro desequilíbrio na
relação entre Rosa e Dado. Ele trabalha como antropólogo e viaja bastante. Ela
também trabalha, mas também cuida das filhas e mantém a casa em ordem. Mesmo
quando Dado está em casa, ele nunca ajuda a esposa com as filhas ou afazeres e
ainda a recrimina por ela não lhe dar atenção. Esse desequilíbrio fica mais
evidente nos momentos em que a câmera enquadra simultaneamente a porta do
quarto do casal e do quarto das filhas. Enquanto Dado se arruma para sair de
noite Rosa coloca sozinha as duas filhas para dormir. Enquanto Dado continua
dormindo sozinho na cama de manhã cedo, Rosa arruma sozinha as duas para a
escola e faz o café da manhã.
A relação entre ela e o marido de
certa forma espelha a relação da mãe dela com Homero (Jorge Mautner), de quem
Rosa achava ser filha. Assim como Rosa trabalhava e matinha a estabilidade
financeira e doméstica da família para que o marido perseguisse seus sonhos e
causas, a mãe dela fazia mesmo pelas pretensões artísticas de Homero, de quem
acabou se separando. Neste sentido é praticamente freudiano que Rosa tenha
casado com alguém praticamente idêntico ao pai, que só se preocupa com a
própria satisfação e foge das responsabilidades. A presença da bagagem
emocional de Rosa com pai em seu casamento acaba sendo simbolizada pela mala de
fantoches que Homero deixa na casa dela. Em um ato falho (olha Freud emergindo
novamente) Rosa até se refere a eles como "fantasmas do pai" ao invés
de fantoches, denotando como a presença do "pai" a assombra.
O filme, no entanto, é
inteligente ao evitar maniqueísmos em relação a Rosa e Dado, construindo ambos
como pessoas falhas e com seus próprios problemas. Rosa se vê insegura e tenta
descobrir seu lugar no mundo para além do papel de esposa e mãe de família.
Dado tenta melhorar sua participação em casa, revendo sua noção de tudo é papel
da esposa, e parece ter uma vontade genuína de fazer a relação funcionar, ainda
que não consiga plenamente compreender o que tanto a incomoda em sua conduta e
a trate de modo condescendente (reparem que ele tenta menosprezar todas as
reclamações dela falando que é TPM).
A jornada de Rosa parece ser a de
tentar entender que ela não precisa se conformar com esse papel e função social
historicamente construídos como sendo da mulher, nem repetir o que seus pais
fizeram e buscar seu próprio caminho. Ao mesmo tempo, a personagem busca
descobrir o que fazer agora que ela não precisa ser aquela mulher prototípica.
Ela busca identidade no pai biológico (Herson Capri) e no pai de um colega de
escola da filha e o filme é inteligente em deixar muitas dessas respostas em
aberto visto que não é uma questão fácil de resolver.
Maria Ribeiro é ótima ao evocar a
angústia e a insatisfação de Rosa com sua vida e com o que se tornou e seu
trabalho é apoiado por performances sólidas do restante do elenco. Do estoicismo
e placidez da maneira como Clarisse Abujamra concebe o modo como a mãe de Rosa
lida com o câncer e a perspectiva de morte, passando pela postura ensimesmada
de Paulo Vilhena como Dado e também o desempenho performático do cantor e poeta
Jorge Mautner ao fazer do pai de Rosa um sujeito que parece ver o mundo como um
palco e constantemente fala através de aforismos e citações.
Apesar do cuidado e da finesse ao construir a jornada de
autodescoberta de Rosa, o filme ocasionalmente martela seus temas de maneira
pouco sutil, como no diálogo entre Rosa e Pedro (Felipe Rocha) na praia. Nesse
sentido, uso da música Como Nossos Pais,
que dá nome ao filme, era de certa maneira inevitável e é acertada a decisão
por um arranjo instrumental que relembra ao espectador a relação entre a canção
e as ideias tratadas aqui sem usar a letra para jogar tudo na cara do
espectador.
Como Nossos Pais funciona como um complexo e sensível lembrete do
quão marcante pais e mães são em nossas vidas, de quanto do nosso é
comportamento é marcado por essa convivência e como muitas vezes nossa própria
noção de si e identidade está vinculada a eles.
Nota: 8/10
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