Fazer um documentário muitas
vezes é partir em busca de algo que não se sabe se será obtido ou alcançado.
Muitas vezes um cineasta tem uma ideia clara do filme que quer, mas no curso da
realização algo acontece que o leva para outra direção. Foi mais ou menos isso
que aconteceu neste Ícaro, produção
original da Netflix.
A intenção inicial do diretor e
ciclista semiprofissional Bryan Fogel era fazer uma espécie de Super Size Me: A Dieta do Palhaço (2004)
do doping. Com auxílio de médicos do
esporte e especialistas de testes antidoping,
ele usaria anabolizantes para melhorar sua performance e burlaria os testes de
drogas para mostrar como é fácil burlar esse tipo de exame, tal qual o ciclista
Lance Armstrong fez durante anos. Durante o processo, o especialista antidoping que acompanhava Bryan decide
desistir, com medo que o ato de ajudar um atleta burlar o sistema acabe com sua
credibilidade no meio esportivo. Bryan acaba então direcionado para o
bioquímico russo Grigory Rodchenkov, o responsável pela agência antidoping da Rússia. Grigory começa a
instruir Bryan, mas logo uma reportagem de uma televisão alemã libera
informações de que o bioquímico está no centro de um esquema encabeçado pelo
governo russo para dopar seus atletas e evitar detecção nos testes. Assim,
Bryan muda seu foco para investigar o papel de Grigory nisso tudo.
Talvez tivesse sido melhor se
Bryan Fogel retirasse toda (ou pelo menos um considerável pedaço) a parte de
seu experimento com doping no
ciclismo no corte final do filme. Esse pedaço inicial faz sua narrativa demorar
a chegar onde quer, torna o filme desnecessariamente longo e seu ponto, o de
que ciclistas conseguem evitar o sistema antidoping,
já tinha sido exaustivamente provado. O escândalo envolvendo Lance Armstrong e
outros ciclistas já tinha sido exaustivamente investigado e analisado em filmes
como A Mentira de Armstrong (2013) e Stop at Nothing: The Lance Armstrong Story
(2014) e, assim sendo, toda o prólogo do filme acaba soando um pouco
redundante.
É quando o filme se debruça sobre
a denúncia do esquema russo que as coisas realmente engrenam e ganham contornos
de filme de espionagem conforme Rodchenkov passa a temer pela própria vida e o
documentário traz um senso palpável de tensão conforme Bryan tenta tirá-lo da
Rússia e mantê-lo seguro. O que se segue acaba sendo um relato detalhado e
contundente de como a alta cúpula russa, implicando diretamente o ministro do
esporte e possivelmente o presidente Vladimir Putin, criaram um esquema que
existe a décadas para que os atletas russos conseguissem usar anabolizantes e ainda
assim passassem incólumes nos testes antidoping.
Ajuda o filme que Rodchenkov seja
um personagem tão fascinante. Nas conversas iniciais com Bryan durante seu
experimento com anabolizantes ele parece ser apenas um sujeito amoral e
antiético ao discutir trapaças de maneira tão aparente e sem vergonha. Aos
poucos, no entanto, vamos descobrindo um componente trágico de sua vida e como,
de certa maneira, ele quase um refém do governo russo, humanizando-o ainda que
não exatamente tente torná-lo um sujeito completamente inocente naquilo tudo.
Conforme segue a reação do COI
(Comitê Olímpico Internacional) em relação às informações divulgadas do esquema
russo, o filme também nos faz pensar como isso provavelmente não é um caso
isolado e que o esquema põe em questão toda a idoneidade dos procedimentos. A
própria decisão do COI em voltar atrás no banimento dos atletas russos a
despeito do acachapante volume de provas materiais já demonstra como a entidade
não é movida meramente pela preocupação com o fair play. Afinal eles poderiam anunciar uma completa
reestruturação de seus processos, fazer um mea
culpa sobre as fraudes que ocorreram sob seus narizes, mas ao invés disso
resolvem enterrar o caso e seguir adiante, revelando que se preocupam mais com
uma aparência de que tudo está bem do que em realmente garantir que tudo esteja
conforme deve ser. Apesar de ser a única a ter provas contundentes reveladas, é
pouco provável que a Rússia seja o único país com um esquema de fraudar o antidoping.
Apesar de começar com um
experimento que tem pouco a dizer sobre o mundo do esporte, Ícaro acaba se transformando em uma
impactante denúncia que põe em questão toda a idoneidade do esporte olímpico.
Nota: 7/10
Trailer
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