Questões sobre privacidade e
individualidade na internet e na era virtual em que vivemos tem sido uma
preocupação relativamente constante da ficção do cinema e da televisão. De
filmes como Inimigo do Estado (1998)
a Controle Absoluto (2008), passando
até mesmo por obras como O Show de Truman
(1998), a ideia de uma vida sob constante vigilância já foi amplamente
explorada. Este O Círculo visa
construir uma narrativa de suspense em cima dessas noções e discutir questões
de ética e privacidade virtual, mas lamentavelmente não consegue dar conta de
suas ambições.
Na trama, Mae (Emma Watson)
consegue um trabalho na grande empresa de tecnologia O Círculo, que centraliza
muitos dos serviços que temos hoje na internet, como redes sociais, mecanismos
de busca, plataforma de vídeos e outras coisas mais. Simultaneamente, o
presidente d'O Círculo, Eamon Bailey (Tom Hanks), anuncia um novo tipo de
câmera portátil minúscula que pode transmitir em alta qualidade para a internet
e que pode ser colocada em qualquer lugar. A nova tecnologia representa para
ele um passo rumo a uma sociedade de completa transparência e nenhuma
informação fica oculta. Mae acaba escolhida para ser o "rosto" desse
novo produto e passa a transmitir toda a sua vida em tempo real na internet,
mas aos poucos começa a desconfiar do que acontece na sua empresa.
O primeiro grande problema é que
o filme não tem sutileza nenhuma ao nos apresentar a empresa e os colegas de
trabalho de Mae. Logo na primeira cena em que ela é abordada por dois colegas
excessivamente efusivos que lhe perguntam sobre sua ausência das redes sociais
e das atividades de "integração" da empresa, fica evidente que o
local tem ares de um culto sinistro, já que os dois personagens são tão
exagerados e caricatos que não há espaço para que fiquemos em dúvida se eles
são apenas pessoas gentis tentando se enturmar ou se são fanáticos. Como não há
duvida ou incerteza quanto ao caráter sombrio da empresa, parte do suspense se
esvai, já que fica evidente a ameaça.
O único eficiente em evocar o
mínimo de ambiguidade para que haja suspense é Tom Hanks, que faz de Eamon
aquele tipo de megaempresário descontraído que tenta convencer a todos que é
"gente como a gente". Hanks, que aqui faz seu primeiro vilão de fato
(seu papel em Matadores de Velinha era
mais cômico do que efetivamente vilanesco), usa sua persona boa praça para nos deixar em dúvida se Eamon é realmente um
sujeito bem intencionado que não vê as implicações ética de seu produto ou se é
um sujeito sem escrúpulo que usa a transparência como pretexto para alcançar
poder absoluto.
Outra questão é que muitas ações
parecem não ter consequência. Quando Mae propõe em uma reunião que todo o
sistema eleitoral dos Estados Unidos use a base de dados do Círculo para que os
eleitores não precisem se cadastrar e que todos votem através dessa plataforma,
é de se imaginar que isso iria criar alguma controvérsia. Afinal, a personagem
fala em privatizar todo o sistema político de um país e colocá-lo nas mãos de
uma companhia privada que pode usá-lo como quiser, isso deveria no mínimo gerar
algum tipo de oposição de parte da sociedade ou mesmo protestos em larga
escala, mas nada acontece. Do mesmo modo, quando alguém próximo a Mae morre
durante a demonstração de um novo recurso que localiza qualquer um em qualquer
lugar, era de se imaginar que houvesse uma investigação criminal, que ela ou
outros fossem inquiridos por incitação à violência ou homicídio, mas a única
consequência é Mae ter alguns dias de afastamento.
Como a trama apela para esse tipo
de solução fácil e sem repercussão ou consequência, boa parte das ideias sobre
os limites da privacidade e como empresas de tecnologia usam os dados que
voluntariamente disponibilizamos acaba sendo diluída. A série Black Mirror, por exemplo, discute tudo
isso de maneira mais rica, reconhecendo a complexidade dessas discussões e como
tudo isso ainda é algo "em fluxo" e não há exatamente uma resposta
pronta para isso.
O arco de Mae também se revela
problemático, principalmente pela guinada que ela dá ao fim, mas também pela já
citada falta de sutileza em estabelecer a empresa como uma força sombria. Mae
parece ser concebida como uma jovem que se deslumbra com seu novo emprego e a
posição de poder que lhe é rapidamente outorgada, mas considerando que tudo é
tão escancaradamente sombrio, ela soa como uma idiota incapaz de ver uma
realidade que berra na cara dela ao invés de uma garota demasiadamente
encantada com os benefícios que tem acesso para se preocupar com o que está
atrás daquilo tudo. Incomoda também a decisão súbita dela de enfrentar a
empresa. já que em uma cena ela está defendendo O Círculo para os pais e na
seguinte ela pede ao engenheiro Ty (John Boyega, o Finn de O Despertar da Força) para lhe ajudar a derrubar Eamon. Aliás, se
Ty podia tão facilmente hackear os
dados confidenciais da empresa e vazá-los na internet, porque ele não fez isso
antes? Afinal, desde a primeira vez que vemos o personagem, ele fala como O
Círculo se tornou uma companhia totalitária.
Há um ditado que diz: "de
boas intenções o inferno está cheio". Isso é basicamente o que acontece
neste filme, que é bem intencionado ao falar sobre privacidade virtual, mas
desperdiça essa boa premissa. No fim O
Círculo acaba falhando por seu inábil manejo do suspense, abordagem rasa às
questões propostas e vários furos na trama.
Nota: 3/10
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