A principal pergunta ao fim da
segunda temporada de Narcos era se a
série conseguiria se manter mesmo sem a figura complexa e instigante de Pablo
Escobar (Wagner Moura). Essa terceira temporada não consegue encontrar um
personagem tão bom quanto o chefe do tráfico das duas primeiras, mas acerta ao
finalmente adotar uma postura crítica em relação à chamada "guerra às
drogas".
Com o fim do reinado de Pablo
Escobar, o agente Peña (Pedro Pascal) volta suas atenções ao Cartel de Cali. O
líderes do Cartel, que se autointitulam "cavalheiros de Cali", no
entanto tem seus próprios planos para deixar o tráfico. Eles planejam uma
rendição ao governo colombiano, mas uma rendição que não trará nenhuma punição
real a eles exceto que deverão parar com suas atividades ilegais. Com seis
meses até o termo de rendição ser efetivado, o Cartel planeja lucrar o máximo
possível com as drogas para ter o suficiente depois que "se
aposentarem". Peña, porém, não está disposto a deixar que eles se safem
com tanta facilidade.
Se nas temporadas anteriores a
presença dos Estados Unidos na Colômbia e toda a retórica de "guerra às
drogas" era aceita acriticamente, aqui há um esforço de demonstrar como
nada disso objetiva resolver coisa alguma e é apenas uma estratégia para que os
EUA mantenham poder sobre países estrangeiros. As estratégias de combate às
drogas parecem criar um ciclo vicioso no qual para derrotar um inimigo é
preciso fomentar opositores e estes opositores inevitavelmente se beneficiam do
vácuo deixado pela derrota do inimigo tomando eles próprios o controle do
narcotráfico. Se antes derrotar o tráfico parecia fácil, bastando derrubar quem
estivesse chefiando tudo, agora parece uma luta quixotesca contra forças amplas
e muitas vezes invisíveis.
A postura crítica e desencantada
quanto ao papel dos EUA em tudo isso é bem-vinda, ainda que tardia, mas apesar
da série amadurecer neste aspecto e deixar de lado uma certa ingenuidade quanto
ao intervencionismo estadunidense, alguns problemas ainda permanecem. O
principal deles é o modo como a narrativa se importa mais com o contexto e como
ele molda as ações e reações dos sujeitos do que com os sujeitos em si. Assim
como nas temporadas anteriores os personagens são meras engrenagens em um
grande relógio que se move a despeito deles. Eu sei que a série quer mostrar o
"grande esquema das coisas" e todo o sistema de corrupção e
interesses escusos que permite a existência do narcotráfico, mas ao tratar seus
personagens como peões em um tabuleiro, eles se tornam meros dispositivos de
roteiro e não indivíduos com personalidades próprias que podemos aderir, torcer
ou rejeitar.
Peguemos, por exemplo, o agente
Peña. Acompanhamos ele há mais de três anos e sabemos pouco ao seu respeito
além do fato de que ele está disposto a se comprometer moralmente por sua
missão, é mulherengo e tem problemas com bebida. Esses dois últimos atributos
apareciam constantemente nas duas temporadas anteriores, mas são praticamente
esquecidos aqui. O agente Murphy (Boyd Holbrook) desaparece completamente sem
maiores explicações. Tudo bem que ele também não era um personagem muito
envolvente, mas depois de fazer o público acompanhá-lo por quase vinte horas de
narrativa era ao menos esperado que se desse algum senso de fechamento ao invés
de simplesmente sumir com o personagem. Os dois líderes do Cartel de Cali são
bandidões genéricos e unidimensionais que nunca atraem nosso interesse ou
temor.
O único personagem que parece ter
alguma personalidade e conflito é Jorge Salcedo (Matias Varela), um dos
responsáveis pela segurança do Cartel que lamenta a vida criminosa que tem e
deseja abrir uma empresa legítima assim que seus chefes se renderem. As
investidas de Peña e do departamento antidrogas, porém, frustram seus planos e
os líderes do Cartel o obrigam a continuar trabalhando. Conforme o cerco de
Peña os aperta e os demais membros da equipe de segurança vão sendo eliminados,
Salcedo começa a contemplar colaborar com os agentes para fugir da violência do
Cartel. Desde o início estabelecido como alguém que não partilha do
comportamento violento dos demais narcos e tem um certo código de honra e de
lealdade e sua jornada põe em teste seus valores conforme ele luta para
sobreviver.
É possível sentir como certas
ações que vão contra sua personalidade tem impacto sobre Salcedo. O modo como
ele desaba e chora diante da esposa depois de sacrificar um amigo para manter
sua posição de informante revela a dor, o desespero e a vulnerabilidade do
personagem diante de sua situação precária. Do mesmo modo, o ator Matias Varela
dá ao personagem uma expressão de surpresa a Salcedo quando ele atira
sucessivas vezes contra um capanga do cartel em um dos últimos episódios, quase
como se naquele momento o personagem descobrisse em si uma brutalidade que ele
nunca soube possuir.
São de Salcedo também os
principais momentos de tensão da temporada conforme ele tenta informar os
agentes do DEA e auxiliá-los a efetuar suas prisões sem comprometer sua posição
dentro do cartel. Especialmente eficiente é a cena da batida ao prédio, na qual
os planos dão errado e Salcedo é obrigado a improvisar. Sim é tudo conduzido de
maneira competente, mas muito do que acontece é aquele jogo de gato e rato que
já vimos em muitas outras narrativas similares, como Sicario: Terra de Ninguém (2015) ou Os Infiltrados (2006). Não há nada aqui que já não tenhamos visto
em outros filmes e séries sobre combate ao crime organizado, incluindo o clímax
da temporada que remete diretamente a Os
Intocáveis (1987) com sua corrida contra o tempo para encontrar e manter em
segurança o contador responsável pelos livros-caixa dos criminosos.
Talvez essa natureza repetitiva
seja a maior prova de como a tal "guerra às drogas" obteve poucos
resultados. Há décadas ouvimos e vemos narrativas inspiradas em fatos reais com
os acontecimentos similares, conflitos similares e tipos de personagens
similares ao ponto em que não apenas esse subgênero narrativo, mas as próprias
estratégias reais de combate ao crime organizado parecem paradas no tempo. Um
cão perseguindo o próprio rabo. Se essa temporada de Narcos obviamente não tem culpa da História (sim aquela em
maiúsculo) continuar se repetindo de maneira trágica e farsesca sem que as
autoridades e governos aprendam coisa alguma, é, no entanto, culpada de
efetivamente ter muito pouco a dizer sobre tudo isso, repetindo os mesmos
clichês de sempre para obter a mesma reação de sempre em seu público. As
anteriores podiam até não ter muito o que dizer também, mas ao menos nos davam
um personagens interessantíssimo na figura de Pablo Escobar.
Essa terceira temporada de Narcos consegue mostrar que ainda há
muito o que ser contado sobre a história do narcotráfico, sendo competente na
construção do suspense e na sua crítica às políticas de combate às drogas, mas
sem uma âncora tão forte e marcante quanto o Escobar de Wagner Moura, tudo soa
como uma repetição de coisas que já vimos antes.
Nota: 6/10
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