segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Lixo Extraordinário - The Room

Análise The Room


Review The Room
Faz tempo que penso em iniciar uma coluna dedicada a falar só sobre filmes lendários por sua ruindade. A escolha de qual filme teria a "honra" de estrear acabou sendo muito fácil. The Room, lançado em 2003, é considerado por muitos o Cidadão Kane dos filmes ruins. É tão ruim, mas tão ruim, no qual tudo é tal mal concebido, que se torna absolutamente hilário.

O fenômeno The Room


Se eu tivesse que explicar o quanto é ruim, provavelmente diria que parece algo feito por um alienígena que nunca esteve na Terra, nunca teve contato com seres humanos e tentou fazer um filme a partir do que ouviu outros alienígenas falarem sobre a conduta da nossa espécie. O resultado é um filme esquisitíssimo no qual ninguém parece se comportar como uma pessoa de verdade, mas um simulacro equivocado do que um humano deveria ser, algo tão sem noção que é difícil não rir. O fato de ter se tornado uma espécie de filme cult nos últimos anos provavelmente se deve a essa capacidade de gerar risos.

O culto a The Room teria começado quando dois estudantes de cinema passaram pela única sala de Los Angeles que exibia o filme (o diretor e roteirista Tommy Wiseau pagava para o cinema manter o filme em cartaz) e perceberam que no cartaz do longa tinha um aviso de "não devolvemos seu dinheiro" ao lado de uma crítica que dizia "ver este filme é como levar uma facada na cabeça".

O aviso atiçou a curiosidade dos estudantes Michael Rousselet e Gairdner (assim como a minha foi atiçada pela lendas sobre a ruindade desse filme) que não só assistiram The Room, como também indicaram a colegas. Com o tempo o filme se tornou febre em certas comunidades cinéfilas dos Estados Unidos, com direito a exibições à meia noite na qual o público ia fantasiado como os personagens do filme, recitavam diálogos em voz alta e atiravam colheres e bolas de futebol americano na tela (explicarei isso mais adiante).

The Room Billboard

Tommy Wiseau, por sua vez, nunca deixou de acreditar no filme e durante cinco anos manteve um outdoor (foto ao lado) de The Room na Highland Avenue em Los Angeles. A peça continha inclusive um número de telefone (da casa do próprio Tommy) para quem quisesse solicitar exibições do filme. Manter o outdoor funcionando custou 300 mil dólares e o filme em si supostamente teria custado 6 milhões (valor alto considerando o quanto a produção é modesta), tudo pago do bolso do próprio Wiseau, que até hoje nunca revelou a fonte de sua fortuna.

O sucesso, ou infâmia, motivou o ator Greg Sestero, que interpreta o Mark no filme, a escrever o livro The Disaster Artist no qual fala sobre sua amizade com Tommy Wiseau e a insólita experiência que foi participar da realização de The Room (sério, leiam o livro, é muito bom). O livro de Sestero inclusive despertou o interesse de algumas pessoas em Hollywood e a história dos bastidores de The Room acabou virando filme pelas mãos de James Franco, que dirige e protagoniza interpretando Tommy Wiseau. Com o título de O Artista do Desastre, o filme chegou a passar aqui no Brasil em alguns festivais, mas ainda não tem data de estreia no circuito comercial e deve estrear nos Estados Unidos em dezembro.

Decifrando The Room


Bem, chega de informações contextuais e vamos direto ao filme. Escrito, dirigido e estrelado por Tommy Wiseau, a trama de The Room é centrada no banqueiro Johnny (Tommy Wiseau). Sua noiva Lisa (Juliette Danielle) o está traindo com seu melhor amigo, Mark (Greg Sestero), e pensa em abandoná-lo. Ele perde uma promoção no trabalho e aos poucos vai se dando conta da traição noiva e sua vida começa a desmoronar. A intenção era claramente fazer um drama sobre a classe média urbana ao estilo das peças escritas por Tennessee Williams, autor de textos seminais como Um Bonde Chamado Desejo e Gata em Teto de Zinco Quente, mas falta a Wiseau não só o talento e sensibilidade crítica de Williams, como também a capacidade de juntar cenas de maneira coesa e tecer uma trama que faça sentido.

Os eventos mostrados em The Room não seguem qualquer lógica causal. Informações são dadas e esquecidas momentos depois, personagens tem uma conduta em uma cena e outra diametralmente oposta na cena seguinte. Muitos personagens entram e saem da narrativa sem terem feito qualquer diferença na trama e muitas cenas não possuem propósito algum.

Em um momento Lisa diz estar de saco cheio de Johnny, mas na cena seguinte se comporta como uma namorada dedicada, comprando pizza e servindo bebidas para consolá-lo sobre a perda de uma promoção. Não há um pingo de desdém ou amargura na personagem, é como se a cena anterior em que ela confessou sua insatisfação nunca tivesse existido. Em um instante Lisa mente para sua mãe dizendo que Johnny bateu nela para tentar justificar sua vontade de encerrar o relacionamento, sendo que na cena seguinte ela exalta o altruísmo de Johnny em pagar o aluguel de Denny (Phillip Haldiman), esquecendo completamente que minutos atrás acusara o noivo de violência doméstica, apenas para voltar a acusá-lo em uma cena posterior com sua amiga Michelle (Robyn Paris). O momento, por sinal, é completamente redundante e inútil já que Lisa apenas repete o que tinha dito para a mãe, não dando nenhuma nova informação.

A cena em que Michelle pega Lisa e Mark no flagra é igualmente redundante, pois Lisa já tinha confessado a ela seu caso e assim toda cena é uma grande perda de tempo que não agrega coisa alguma ao filme. Michelle, por sinal, aparece no aniversário de Johnny ao fim do filme acompanhada por Steven (Greg Ellery), um personagem que nunca tinha aparecido ou sido citado pela trama, embora cenas anteriores tenham mostrado ela namorando Mike (Mike Holmes). De onde saiu Steven? Porque Steven se comporta como se fosse íntimo de Lisa e Johnny? Ele já os conhecia? O que aconteceu com Mike? Isso é um mistério que provavelmente nem Sherlock Holmes conseguiria resolver.

Posteriormente Johnny confronta Lisa sobre a mentira da violência doméstica e ela diz que considera não casar com ele. Era de se imaginar alguma tensão fosse sair disso, mas Lisa simplesmente sobe para seu quarto e Johnny diz que a ama, ignorando tudo que acabou de acontecer. É nessa cena que está um dos diálogos mais hilários do filme quando Johnny simplesmente berra, sem razão alguma, "você está acabando comigo!" ("you're tearing me apart!" em inglês). A fala é claramente inspirada em um diálogo idêntico de Juventude Transviada (1955) no qual o personagem interpretado por James Dean diz isso aos pais. Wiseau era um grande fã de James Dean e provavelmente inseriu essa mesma fala em seu filme para tentar ser como seu ídolo, a questão é que o diálogo e a interpretação de Wiseau destoam completamente do restante da cena. Na verdade a atuação de Wiseau destoa de qualquer conduta humana básica, mas isso será abordado mais adiante.

A trama é cheia de eventos que não repercutem. Em uma cena a mãe de Lisa, Claudette (Carolyn Minott) diz ter câncer e isso é completamente esquecido no restante do filme. O modo casual e descompromissado com o qual Claudette dá essa informação grave para a filha mais parece que ela está admitindo ter encontrado um furúnculo na bunda do que uma doença com sério risco de morte. Outro acontecimento bizarro é o confronto entre Denny, vizinho que Johnny considera como um filho adotivo, e o traficante Chris-R (Dan Janjigian, provavelmente o ator mais convincente de todo o filme) no terraço do prédio. Chris-R (que raio de nome é esse?) saca uma arma para Denny e exige seu dinheiro (porque ele faz isso no terraço?), mas é rapidamente detido por Johnny e Mark. Denny admite ter tido problemas com drogas (quais? Isso nunca é especificado), mas isso não volta a ser mencionado em qualquer outro momento, tampouco as dívidas dele com o tráfico vão trazer qualquer repercussão no restante do filme.

As ações dos personagens também não parecem seguir nenhuma lógica. Johnny ouve Lisa admitir para a mãe que o está traindo e ele decide colocar um gravador na sala. Se ele já tinha testemunhado a confissão, qual o motivo de precisar gravá-la dizendo aquilo? Se ele queria confrontá-la com a confissão bastava dizer que tinha ouvido tudo, não precisava de uma gravação. Quando ele finalmente a confronta com a gravação no fim do filme, o dispositivo já não tem qualquer valor uma vez que o próprio Mark e Lisa já tinham admitido o caso.

Em uma cena no início do filme Denny confessa que ama Lisa e tem vontade de beijá-la e Tommy não parece nem um pouco abalado ou impactado de que seu "filho adotivo" tenha desejos sexuais em relação à sua noiva, o que é bem bizarro. O mesmo pode ser dito sobre a cena em que Mark confessa seu caso com Lisa para Peter (Kyle Vogt), um amigo em comum dele e Johnny, ao ser confrontado por ele. Peter, por sinal, não parece nem um pouco abalado quando Mark o arrasta para o parapeito do terraço e ameaça jogá-lo de lá. Nada disso tem qualquer desenvolvimento porque Peter só volta a aparecer em uma cena na qual ele e outros personagens brincam com uma bola de futebol americano.

O filme é cheio de cenas inúteis com os personagens brincando com bolas de futebol americano, jogando a bola uns para os outros. Em uma delas Mark derruba Mike, um outro amigo dele e Johnny, e Mike torce o pé. A queda de Mike é hilária de tão tosca e o machucado dele nunca mais é mencionado. Em outro momento, os personagens estão no apartamento de Johnny vestindo smokings e resolvem brincar com a bola do lado de fora. Qual o sentido disso? Porque eles fazem isso vestindo smokings? Porque eles estavam vestindo smokings em primeiro lugar? Ignorando isso ainda há a esquisitice do filme tratar o fato de Mark chegar sem barba à casa de Tommy como um grande momento para o personagem. Qual o motivo disso ser um grande momento? Ele tinha algum trauma em relação à barba? Tinha feito uma promessa de não cortá-la?

The Room Sex Scenes
Uma das piores cenas de sexo da história do cinema
Diante de tanta coisa sem sentido, o que dizer da cena em que Mike e Michelle fazem sexo no apartamento de Lisa e Johnny? É bem esquisito que Lisa não veja problema em ter duas pessoas transando no apartamento dela quando ela está ausente. Ela não parece nem um pouco abalada quando os pega no flagra ao chegar em casa, como se ter seu apartamento transformado em motel por seus amigos e vê-los transando fosse a coisa mais normal do mundo. Eles não tem casa ou dinheiro para um hotel? A cara de Mike (foto à esquerda) quando Michelle lhe faz sexo oral, por sinal é uma das coisas mais ridículas de toda a história do cinema.

As cenas de sexo e as personagens femininas


Falando em sexo, o filme é cheio de cenas de sexo que parecem ter sido pensadas por alguém que nunca transou na vida. Pontuadas por um pop romântico super brega que parece saído de um pornô softcore antigo, as cenas de sexo são ocasionalmente anatomicamente incorretas, já que em duas (na verdade uma, já que a segunda cena reutiliza imagens da primeira como se ninguém fosse perceber) delas, pelo posicionamento dos atores, Johnny parece estar penetrando o umbigo de Lisa. Talvez o protagonista tenha algum fetiche sexual por umbigos, talvez os atores estivessem desconfortáveis e por isso acabaram naquela posição esquisita, talvez eu esteja desperdiçando tempo precioso da minha vida com ilações sobre a representação do sexo em filmes ruins, sei lá. São, no entanto, cenas de sexo mais divertidas de ver do que as da franquia Cinquenta Tons de Cinza.

Se formos prestar atenção nas personagens femininas de The Room é possível perceber um padrão bem claro na maneira como elas são apresentadas. As mulheres do filme passam o tempo todo fofocando e falando mal de outras pessoas. Suas conversas giram em torno de homens e dinheiro, fazendo-as soar como criaturas fúteis e aproveitadoras. Por outro lado, imagino que reclamar da caracterização de qualquer grupo social em um filme que sequer consegue estabelecer um elo lógico/causal entre suas cenas é como reclamar com um elefante por ele não falar mandarim.

Isso, no entanto, permite perceber que não há motivação alguma para Lisa trair Johnny. Ela fala que o noivo é entediante, que quer mais da vida, mas o que a deixa exatamente entediada? Que outros planos ela tem? Parece que ela o trai por algum tipo de maldade nata. A personagem deveria ser uma mulher extremamente sedutora, capaz encantar qualquer homem que encontre, e também uma hábil manipuladora. Nada disso, porém, está presente na atuação de Juliette Danielle, faltando-lhe malícia, desfaçatez, engenhosidade ou mesmo a impressão de alguém amargurada por uma relação infeliz.

A interpretação de Tommy Wiseau


O trabalho de Danielle, no entanto, soa como algo digno de prêmios perto do que é a interpretação de Tommy Wiseau. Vê-lo atuando é como ver a barata Edgar de MIB: Homens de Preto (1997), uma criatura que superficialmente parece um ser humano, mas cuja conduta sequer chega perto de um. Todas as falas dele são ditas com extrema artificialidade, como se ele estivesse lendo em um cartaz (e segundo o livro do Greg Sestero isso que aconteceu em muitas cenas) e considerando que o próprio Wiseau escreveu o roteiro do filme, isso é uma ocorrência quase que incompreensível. Como o sujeito não consegue lembrar de palavras que ele mesmo escreveu?

Ignorando a maneira esquisita com a qual ele diz suas falas, há também a questão da maneira como ele reage a outros personagens. Em uma cena Mark conta a ele uma história sobre uma mulher que tinha muitos amantes e foi espancada pelo namorado indo parar no hospital gravemente ferida. A reação do personagem de Wiseau? Ele ri copiosamente e diz "boa história Mark". Que tipo de pessoa se acaba de rir ao ouvir um relato de violência como esse? Seria Johnny secretamente um sociopata? Será que Wiseau estava tentando fazer uma crítica ao capitalismo especulativo dos bancos que acaba desumanizando seus funcionários? Ou Wiseau simplesmente não tem a menor noção de como as pessoas interagem umas com as outras? Praticamente toda vez que ele está em cena há uma fala ou reação tão insólita que é digna de virar meme.

Até mesmo a cena final de Johnny, na qual ele destrói seu apartamento ao ser deixado por Lisa é bastante artificial. Em boa parte das tomadas Wiseau balança seus braços como um daqueles bonecos de ar de postos de gasolina e sequer consegue convencer da raiva descontrolada de seu personagem. Se a cena era pra criar empatia por Johnny, ela fracassa miseravelmente assim que o protagonista começa a encoxar vigorosamente o vestido vermelho que deu para Lisa no começo do filme. Diante de algo tão bizarro e involuntariamente cômico, o suicídio do personagem segundos depois soa como um grande alívio, já que finalmente percebemos que tudo está acabando.

Os defeitos técnicos


O filme é ainda marcado por uma série de questões técnicas. Em muitas cenas há um claro problema na sincronização do som, que não acompanha o movimento da boca dos personagens. Em outras, como a cena da floricultura, fica evidente que os diálogos foram redublados em pós produção e as falas foram ditas com uma rapidez enorme para poderem caber no tempo das imagens já gravadas. O chroma key usado nas cenas do terraço é completamente artificial e fica evidente que tudo foi filmado diante de uma tela verde. Há também uma série de questões em relação a figurino e set design.

The Room Full of Spoons
O mistério das colheres
Boa parte dos figurinos de Johnny não são condizentes com sua profissão de banqueiro bem sucedido. Na maioria do tempo ele veste um paletó preto que parece ter sido emprestado de alguém maior que ele, uma camisa preta e calças cargo bege com bolsos laterais que parecem estar sempre cheios, fazendo o personagem parecer um mendigo que pegou roupas aleatórias de um cesto de doações em um abrigo. O set do apartamento também tem várias escolhas esquisitas, em especial os vários porta-retratos contendo imagens de colheres (imagem à direita). Que tipo de pessoa exibe fotos de colheres em sua sala de estar? Johnny ou Lisa são colecionadores de colheres raras ou qualquer coisa do tipo? É um elemento tão aleatório que durante as exibições do filme os fãs jogam colheres de plástico na direção da tela todas as vezes que os retratos aparecem em cena.

Em Síntese



The Room acaba sendo um ótimo exemplo do que não se deve fazer durante a realização do um filme. Seu olhar sobre as interações humanas é tão errado que se torna fascinante, seu texto é tão sem nexo que não seria equivocado dizer que sua totalidade é um grande furo narrativo. É tudo tão bizarro e desconexo que desconfio que se o filme tivesse sido vendido como uma obra surrealista e enigmática como os trabalhos de David Lynch talvez tivesse tido algum sucesso em seu lançamento. É um filme tão mal concebido e cheio de erros inacreditáveis que acaba sendo irresistivelmente divertido, tudo graças à visão singular (porque literalmente mais ninguém faria algo assim) de Tommy Wiseau.


Como não achei um trailer oficial, fiquem com essa seleção de "melhores" momentos:

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