Muito se fala sobre o olhar
crítico que a série Black Mirror traz
para a relação entre a humanidade e a tecnologia, mas boa parte dessas
discussões deixa de lado uma faceta bem importante da série de antologia. Black Mirror é também centrada e
sustentada pelos seus complexos e cuidadosos estudos de personagem, usando a
tecnologia como uma projeção da consciência humana. Um meio através do qual as
inseguranças, vícios, anseios e demandas do ser humano ficam ainda mais
evidentes. Afinal, se enquanto humanos somos incompletos e cheios de contradições,
é justo que boa parte daquilo que produzimos, incluindo a tecnologia, seja um
espelhamento por vezes sombrios de atributos nossos que preferimos tentar
esquecer. Essa quarta temporada de Black
Mirror continua sua investigação sobre a conduta humana e, em geral,
continua bastante consistente ainda que alguns episódios deixem a desejar.
Os episódios
O episódio que abre a temporada é
USS Calister e usa de uma ambientação
retrô inspirada em Star Trek para
falar da mudança de comportamento das pessoas dentro da internet. Indivíduos
que parecem gentis e bem intencionados no mundo real, mas que sob o véu do
anonimato e da distância física proporcionada por interações online se
transformam em sujeitos desprezíveis. A narrativa acerta ao não fazer do
programador Robert Daly (Jesse Plemons), o típico perdedor que mora no porão
dos pais. Na verdade Daly é um sujeito bem-sucedido, um programador celebrado e
alguém que poderia conseguir o que quisesse no mundo real, mas ao invés de agir
prefere ficar passivo e culpar os outros por seus próprios problemas. Assim
sendo, ele busca na internet um refúgio para as insatisfações com o mundo real,
preferindo construir uma fantasia virtual em que ele é herói ao invés de lidar
com seus problemas.
A trama deixa evidente, por
exemplo, o interesse que a colega de trabalho Nanette (Cristin Milioti) tem por
ele, mas ao invés de tentar se aproximar dela, Daly apenas fica de longe
observando o sócio tentando cortejá-la e julgando os dois. O desfecho é
inteligente o bastante para evitar um clima de final feliz ao lembrar que mesmo
livres de Daly a tripulação da Callister ainda tem toda uma galáxia de trolls de internet para enfrentar.
O segundo episódio, Arkangel, é uma exploração sobre a necessidade
que pais e mães tem de manter seu filho sob controle. Recentemente foi cunhado
o termo "pais helicóptero" (ou helicopter
parenting em inglês) para designar os pais que ficam o tempo todo pairando
sobre os filhos, gerenciando cada minuto de suas vidas, tomando decisões por
eles e sufocando suas vidas com monitoramento constante. Esse segundo episódio
leva ao limite esse conceito de incessante monitoramento parental ao introduzir
o Arkangel, um chip colocado na criança para que os pais possam ver (com um
tablet) o que seus filhos enxergam, monitorar sua localização, sua saúde e até
filtrar o que eles podem ou não podem ver.
Logicamente esse nível de
controle sobre a vida de outro ser humano gera consequências pouco saudáveis,
já que ao invés de dialogar e orientar a filha, a protagonista Marie (Rosemarie
DeWitt) simplesmente toma todas as decisões por ela sem sequer avisá-la do que
faz como se ela fosse um bichinho de estimação e não um ser humano dotado de
autonomia ou consciência.
O terceiro episódio, Crocodilo, funciona como uma
representação do modelo de uma sociedade em panóptico (no qual todos vigiam
todos) tal como pensado por Michel Foucault em seu seminal livro Vigiar e Punir. Aqui a ideia de que
todos observam todos é evidenciada por um dispositivo que permite ver as memórias
de outros e assim quase sempre possível achar uma testemunha para qualquer
crime ou incidente. A protagonista do episódio, Mia (Andrea Riseborough), é uma
mulher que luta para manter oculto um erro do passado, mas que vê seu segredo
ameaçado e decide eliminar todos que possam revelar seu passado. É um pouco
difícil embarcar na transformação da protagonista em uma eficiente assassina
capaz de se esgueirar nas casas de desconhecidos sem ser notada, mas a cena
final serve como um impactante lembrete de que não importa o quanto tente
esconder algo, sempre existem olhos sobre você.
O quarto episódio, Hang the DJ, tenta reproduzir o clima de
romantismo e otimismo de San Junipero da temporada anterior. Apesar do casal carismático de protagonistas e
inicialmente tentar criticar a noção de se relacionar com pessoas a partir de
um algoritmo, o final praticamente contradiz todas as ideias levantadas ao
longo do episódio, praticamente endossando a noção de que se pode confiar nesse
tipo de dispositivo para encontrar um par perfeito. Se San Junipero levantava questões complexas sobre as implicações de
viver para sempre ou a natureza da realidade, Hang the DJ não alcança o mesmo aprofundamento.
Metalhead, por sua vez, não só é o mais fraco da temporada como também
da série inteira. Filmado todo em preto e branco para tentar evocar uma
atmosfera de ficção científica distópica dos anos 40 ou 50, o filme mostra uma
mulher sendo perseguida por um implacável robô. Como falta tensão à perseguição
e personalidade à protagonista, é difícil se importar com qualquer coisa que
acontece ao longo do episódio e essa apatia prejudica o final. A última cena
deveria ser uma revelação impactante, mas como tudo que aconteceu até então falhou
em envolver, o final não tem a força que deveria.
Black Museum encerra a temporada trabalhando estruturas típicas de
contos de terror dando a eles uma roupagem futurista e pendendo para o cyberpunk. O início da trama, com a
personagem acidentalmente parando em uma propriedade isolada, remete a um
cenário conhecido de "casa do terror". Do mesmo modo, conforme
ouvimos as histórias do curador do museu, Rolo Haynes (Douglas Hodge), ele vai
se assemelhando cada vez mais ao arquétipo do estranho que oferece acordos e
faz seus maiores desejos se tornarem um grande tormento, um modelo de
personagem que já foi usado por autores como Stephen King e Ray Bradbury.
Conforme a trama avança, no entanto, o que era uma história de terror vai se
transformando em um conto sobre vingança e todas as pequenas narrativas
contadas até então vão convergindo em um apoteótico e recompensador desfecho.
Assim sendo, apesar de alguns
episódios deixarem a desejar, a quarta temporada de Black Mirror continua a oferecer poderosas reflexões sobre a
condição e natureza humanas, bem como nossa relação com a tecnologia.
Nota: 8/10
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