Em A Forma da Água o diretor Guillermo del Toro cria algo difícil de
definir sob uma chave de gênero narrativo. A mescla de elementos de horror,
romance, suspense, filme de monstro, de espionagem e até um número musical
podia render uma colcha de retalhos sem personalidade, mas o cineasta mexicano
consegue criar algo bastante singular a partir dessa mescla de referências.
A trama se passa na década de 50
e é centrada em Elisa (Sally Hawkins), uma mulher muda que trabalha como
faxineira em uma instalação militar do governo dos EUA. Um dia, durante a
limpeza de uma das salas mais secretas, Elisa descobre que o governo está
mantendo cativa uma misteriosa criatura aquática anfíbia (Doug Jones) e aos
poucos vai ficando mais próxima da criatura.
Filmes como O Monstro da Lagoa Negra (1954), que é claramente uma referência
para ser aquático deste A Forma da Água,
sempre usaram suas criaturas como uma metáfora da incapacidade do ser humano em
compreender e lidar com o que é diferente. O monstro representa o diferente, o
não conformismo aos padrões de normalidade e por isso mesmo é considerado uma
ameaça que precisa ser exterminada, já que aceitá-lo ou colocá-lo no mesmo
nível que um humano significaria repensar (e portanto por em risco) os tais
padrões de normalidade. Guillermo del Toro reverbera todos esses temas, mas
aqui desloca o eixo do protagonismo para o monstro e aqueles que, como ele, são
considerados aberrantes e fora dos padrões de normatização da sociedade da
época.
Se essa fosse uma produção feita
a 50 anos atrás o vilão Strickland (Michael Shannon) provavelmente seria o
herói da história. Strickland é um sujeito cujo principal objetivo de vida é
corresponder à imagem idealizada do que um cidadão dos Estados Unidos deve ser.
Não é à toa que em dado momento ele come a mesma gelatina cuja publicidade
vemos o personagem de Richard Jenkins desenhar e que contem uma família feliz e
idealizada consumindo o produto.
O filme, no entanto, revela que
por trás dessa imagem de "família feliz ideal de propaganda" há um
lado sórdido, exemplificado por toda a cena na qual a esposa de Strickland pede
para que ele suba ao quarto depois que seus filhos vão para escola, no qual há
um senso de superioridade tão artificial e absurdo que faz o personagem se
sentir no direito de fazer o que bem entender com qualquer um que considere
inferior. Nesse sentido, os dedos necrosados de Strickland funcionam como um
símbolo visual para a podridão interna do personagem que insiste em emergir
para a sua superfície.
Inicialmente a aproximação entre
Elisa e a criatura parece acontecer por necessidade de roteiro, já que a trama
não dá tempo para construir uma motivação para o começo do interesse dela.
Conforme a trama avança, porém, o afeto que ela nutre pelo monstro vai ficando
mais crível em virtude de percebermos que ela começa a ver nele alguém tão
incompleto e incompreendido como ela. Aliás, tanto Sally Hawkins quanto Doug
Jones são ótimos em explicitarem como seus personagens se sentem apenas com
seus corpos e expressões faciais. Os efeitos práticos e maquiagem que dão vida
à criatura interpretada por Jones, por sinal, são extremamente competentes e
nos fazem crer que algo assim realmente possa existir. Inclusive chega a ser
curioso que dentre todos os Oscars aos quais o filme é indicado ele não tenha
sido lembrado nas categorias de maquiagem ou de efeitos especiais, já que se a
criatura não funcionasse nem conseguíssemos nos conectar com ela, o filme não
funcionaria.
Além de Hawkins e Jones, o resto
do elenco é igualmente competente. O destaque fica por conta de Richard Jenkins
e sua composição sutil de um homossexual no armário que aparentemente perdeu
seu emprego e carreira justamente por ser quem é. Por outro lado a Zelda vivida
por Octavia Spencer não difere muito de outras personagens interpretadas pela
atriz em filmes como Histórias Cruzadas (2011)
ou Estrelas Além do Tempo (2017). Não
é uma personagem ruim, ela certamente funciona no contexto do filme e tem
momentos divertidos, principalmente quando fala sobre o inútil marido, mas fica
a sensação de que a atriz está presa ao mesmo tipo de persona.
Ainda assim, A Forma da Água é um belo conto sobre amor e enfrentamento de
preconceitos que se vale do estilo visual de Guillermo del Toro para fazer uma
rica releitura dos cânones do cinema hollywoodiano.
Nota: 8/10
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