Se observarmos isoladamente os
elementos que compõem essa primeira temporada da série Altered Carbon vamos perceber que não tem nada que já não tenha
sido abordado pela ficção-científica cyberpunk
(como Blade Runner ou Ghost in the Shell) ou pela narrativa
policial. Ainda assim, o grande mérito da série é como ela pega esse conjunto
de múltiplas referências para criar um universo coeso e singular que não só é
maior que a soma de suas partes como também se sustenta por conta própria
independente de compreendermos ou não seu diálogo com diferentes cânones da
ficção.
A trama se passa em um futuro no
qual a mente humana pode ser digitalizada e colocada em pequenos cartuchos que
ficam alocados na base da nuca. Com isso é possível se tornar virtualmente
imortal, bastando colocar seu cartucho em um novo corpo quando o original
morre. A questão é que novos corpos são caros e, portanto, os mais pobres não
tem como pagar e seus cartuchos ficam guardados quando seus corpos morrem. Além
disso, é possível ter uma "morte real" caso seu cartucho seja
destruído, mas os mais ricos conseguem evitar isso através de um caro sistema
de backups. Assim, temos uma
sociedade na qual os ricos vivem para sempre e ficam cada vez mais ricos enquanto
os pobres ficam largados à penúria. No centro disso tudo está Takeshi Kovacs
(Joel Kinnaman) o último dos Emissários, uma unidade que enfrentou o atual
governo há mais de duzentos anos atrás.
Takeshi é colocado em um novo
corpo depois de séculos confinado em seu cartucho para que possa investigar a
morte do ricaço Laurens Bancroft (James Purefoy), que foi morto em seu
escritório fechado com sua própria arma, guardada em um cofre que apenas ele ou
a esposa poderiam abrir. Felizmente Bancroft tinha feito um backup de seu cartucho, permitindo-o
sobreviver ao ataque, mas como o backup
foi feito antes do crime, ele não tem nenhuma memória do que aconteceu.
A premissa investigativa é um
típico "mistério do quarto fechado" que já foi usado à exaustão em
tramas policiais e cujo início pode ser traçado ao conto Os Crimes da Rua Morgue de Edgar Allan Poe. Não é, portanto, por
acaso que a série introduz um hotel chamado O Corvo (poema mais famoso de Poe)
que é administrado por uma IA com o nome e o rosto do célebre escritor. É
bastante simbólico que Kovacs literalmente seja ajudado por Poe (Chris Conner),
como que a série e a criadora Laeta Kalogridis assumissem sem medo o legado
cultural no qual estão se apoiando, demonstrando uma confiança de que seu texto
conseguirá desenvolver algo a partir desses elementos ao invés de apenas
repeti-los.
A presença de Poe serve para
apontar a filiação do texto a outra categoria de literatura à qual o romancista
estava filiado que é o gótico. Temas típicos do romance gótico como a loucura,
devassidão, deformação corporal, críticas ao materialismo burguês ecoam com
força ao longo da temporada. A exploração da natureza dual do amor, outro
elemento típico, é feito através da relação de Takeshi com as mulheres que
cruzam seu caminho. Tal como em um romance gótico o amor é tanto uma força que
corrompe, degrada e destrói, como acontece com Takeshi e Rei (Dichen Lachman),
como pode ser uma sentimento que edifica e liberta, a exemplo da relação do
protagonista com Ortega (Martha Higareda). Isso sem mencionar que a trama entre
Takeshi e Quell (Renée Elise Goldsberry) já traz em si essa dualidade sobre o
amor.
Takeshi é um ex-militar
traumatizado por seu passado e pelas coisas que viu combatendo ao lado dos
Enviados. É um homem marcado por uma vida de violência, de perdas e mágoas,
exibindo, principalmente através de suas narrações, um ponto de vista cínico e
fatalista em relação ao mundo. Joel Kinnaman é bastante convincente ao
apresentar a pose rígida e agressiva do detetive que é usada como fachada para
que os outros não penetrem em seu frágil estado mental, ainda preso ao passado
e tudo que ele perdeu. O personagem, por sinal, é bem similar aos protagonistas
ex-militares durões e traumatizados que figuravam nas produções dos noir das décadas de 40 e 50 como A Dália Azul (1946), Uma Aventura na Noite (1946) ou Confissão (1947). Na verdade, o arco
dramático de Takeshi, seus constantes flashbacks
à vida pregressa e alucinações com um amor perdido remetem bastante ao
Teddy Daniels do filme Ilha do Medo
(2010) que, não por acaso, foi escrito pela mesma Laeta Kalogridis.
Também semelhante aos antigos noir, este universo é também marcado por
profundas desigualdades sociais, corrupção, violência e indivíduos sórdidos. Há
um senso constante de que aqueles que vivem nos cantos mais marginalizados
dessas metrópoles tecnológicas são apenas joguetes nas mãos dos ricos que
permanecem impunes e no controle de tudo. É um universo de pouca clareza moral
no qual aqueles são colocados à margem da sociedade fazem de tudo para
sobreviver. A trama usa sua ambientação de ficção científica para mostrar como
a existência de imortalidade aumentou ainda mais o abismo entre ricos e pobres,
tornando o mundo ainda mais desigual e opressivo com os ricos se tornando quase
como uma casta de deuses olhando para o mundo de suas torres sobre as nuvens. A
oposição entre pobres e ricos é também delineada pelo modo que esses espaços
são filmados, com os bairros pobres sendo tomados por sujeira, detritos e
sombras, a pouca iluminação vindo de letreiros neon, enquanto que as mansões
dos ricos são tomadas por luz e predominam tons de branco.
A possibilidade de viver para
sempre e trocar de corpo é usada para produzir reflexões sobre o que significa
estar vivo, como construímos nossa identidade e como abordaríamos nossa vida
diferente se soubéssemos ter "vidas extras" como se fosse um
videogame. A trama faz uma competente exploração de como esses elementos
impactariam nossa existência, tanto em questões jurídicas ou políticas como até
mesmo religiosas ao incluir um grupo de cristãos conservadores que se opõem à
ideia de transferir o cartucho para outro corpo após a morte. A tecnologia
desse universo também é explorada para criar ótimas e criativas cenas de ação
como a luta em gravidade zero ou as torturas virtuais às quais os personagens
são submetidos, tudo de maneira bastante gráfica e sanguinolenta.
A primeira temporada de Altered Carbon consegue, portanto, se
apropriar de elementos típicos de vários gêneros sem jamais soar derivativa.
Esses elementos são combinados para criar um universo envolvente, tecendo uma
complexa narrativa sobre a condição humana, nossos vícios, virtudes e relação
com tecnologia.
Nota: 8/10
Trailer
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