domingo, 4 de fevereiro de 2018

Crítica - Altered Carbon: 1ª Temporada

Review  Altered Carbon: 1ª Temporada


Análise  Altered Carbon: 1ª Temporada
Se observarmos isoladamente os elementos que compõem essa primeira temporada da série Altered Carbon vamos perceber que não tem nada que já não tenha sido abordado pela ficção-científica cyberpunk (como Blade Runner ou Ghost in the Shell) ou pela narrativa policial. Ainda assim, o grande mérito da série é como ela pega esse conjunto de múltiplas referências para criar um universo coeso e singular que não só é maior que a soma de suas partes como também se sustenta por conta própria independente de compreendermos ou não seu diálogo com diferentes cânones da ficção.

A trama se passa em um futuro no qual a mente humana pode ser digitalizada e colocada em pequenos cartuchos que ficam alocados na base da nuca. Com isso é possível se tornar virtualmente imortal, bastando colocar seu cartucho em um novo corpo quando o original morre. A questão é que novos corpos são caros e, portanto, os mais pobres não tem como pagar e seus cartuchos ficam guardados quando seus corpos morrem. Além disso, é possível ter uma "morte real" caso seu cartucho seja destruído, mas os mais ricos conseguem evitar isso através de um caro sistema de backups. Assim, temos uma sociedade na qual os ricos vivem para sempre e ficam cada vez mais ricos enquanto os pobres ficam largados à penúria. No centro disso tudo está Takeshi Kovacs (Joel Kinnaman) o último dos Emissários, uma unidade que enfrentou o atual governo há mais de duzentos anos atrás.


Takeshi é colocado em um novo corpo depois de séculos confinado em seu cartucho para que possa investigar a morte do ricaço Laurens Bancroft (James Purefoy), que foi morto em seu escritório fechado com sua própria arma, guardada em um cofre que apenas ele ou a esposa poderiam abrir. Felizmente Bancroft tinha feito um backup de seu cartucho, permitindo-o sobreviver ao ataque, mas como o backup foi feito antes do crime, ele não tem nenhuma memória do que aconteceu.

A premissa investigativa é um típico "mistério do quarto fechado" que já foi usado à exaustão em tramas policiais e cujo início pode ser traçado ao conto Os Crimes da Rua Morgue de Edgar Allan Poe. Não é, portanto, por acaso que a série introduz um hotel chamado O Corvo (poema mais famoso de Poe) que é administrado por uma IA com o nome e o rosto do célebre escritor. É bastante simbólico que Kovacs literalmente seja ajudado por Poe (Chris Conner), como que a série e a criadora Laeta Kalogridis assumissem sem medo o legado cultural no qual estão se apoiando, demonstrando uma confiança de que seu texto conseguirá desenvolver algo a partir desses elementos ao invés de apenas repeti-los.

A presença de Poe serve para apontar a filiação do texto a outra categoria de literatura à qual o romancista estava filiado que é o gótico. Temas típicos do romance gótico como a loucura, devassidão, deformação corporal, críticas ao materialismo burguês ecoam com força ao longo da temporada. A exploração da natureza dual do amor, outro elemento típico, é feito através da relação de Takeshi com as mulheres que cruzam seu caminho. Tal como em um romance gótico o amor é tanto uma força que corrompe, degrada e destrói, como acontece com Takeshi e Rei (Dichen Lachman), como pode ser uma sentimento que edifica e liberta, a exemplo da relação do protagonista com Ortega (Martha Higareda). Isso sem mencionar que a trama entre Takeshi e Quell (Renée Elise Goldsberry) já traz em si essa dualidade sobre o amor.

Takeshi é um ex-militar traumatizado por seu passado e pelas coisas que viu combatendo ao lado dos Enviados. É um homem marcado por uma vida de violência, de perdas e mágoas, exibindo, principalmente através de suas narrações, um ponto de vista cínico e fatalista em relação ao mundo. Joel Kinnaman é bastante convincente ao apresentar a pose rígida e agressiva do detetive que é usada como fachada para que os outros não penetrem em seu frágil estado mental, ainda preso ao passado e tudo que ele perdeu. O personagem, por sinal, é bem similar aos protagonistas ex-militares durões e traumatizados que figuravam nas produções dos noir das décadas de 40 e 50 como A Dália Azul (1946), Uma Aventura na Noite (1946) ou Confissão (1947). Na verdade, o arco dramático de Takeshi, seus constantes flashbacks à vida pregressa e alucinações com um amor perdido remetem bastante ao Teddy Daniels do filme Ilha do Medo (2010) que, não por acaso, foi escrito pela mesma Laeta Kalogridis.

Também semelhante aos antigos noir, este universo é também marcado por profundas desigualdades sociais, corrupção, violência e indivíduos sórdidos. Há um senso constante de que aqueles que vivem nos cantos mais marginalizados dessas metrópoles tecnológicas são apenas joguetes nas mãos dos ricos que permanecem impunes e no controle de tudo. É um universo de pouca clareza moral no qual aqueles são colocados à margem da sociedade fazem de tudo para sobreviver. A trama usa sua ambientação de ficção científica para mostrar como a existência de imortalidade aumentou ainda mais o abismo entre ricos e pobres, tornando o mundo ainda mais desigual e opressivo com os ricos se tornando quase como uma casta de deuses olhando para o mundo de suas torres sobre as nuvens. A oposição entre pobres e ricos é também delineada pelo modo que esses espaços são filmados, com os bairros pobres sendo tomados por sujeira, detritos e sombras, a pouca iluminação vindo de letreiros neon, enquanto que as mansões dos ricos são tomadas por luz e predominam tons de branco.

A possibilidade de viver para sempre e trocar de corpo é usada para produzir reflexões sobre o que significa estar vivo, como construímos nossa identidade e como abordaríamos nossa vida diferente se soubéssemos ter "vidas extras" como se fosse um videogame. A trama faz uma competente exploração de como esses elementos impactariam nossa existência, tanto em questões jurídicas ou políticas como até mesmo religiosas ao incluir um grupo de cristãos conservadores que se opõem à ideia de transferir o cartucho para outro corpo após a morte. A tecnologia desse universo também é explorada para criar ótimas e criativas cenas de ação como a luta em gravidade zero ou as torturas virtuais às quais os personagens são submetidos, tudo de maneira bastante gráfica e sanguinolenta.

A primeira temporada de Altered Carbon consegue, portanto, se apropriar de elementos típicos de vários gêneros sem jamais soar derivativa. Esses elementos são combinados para criar um universo envolvente, tecendo uma complexa narrativa sobre a condição humana, nossos vícios, virtudes e relação com tecnologia.


Nota: 8/10

Trailer

Nenhum comentário:

Postar um comentário