No papel essa primeira temporada
de Desenrolados soa como uma ótima
ideia: uma comédia sobre pessoas que trabalham em uma clínica de maconha
medicinal para abordar a questão ainda tabu da legalização do produto. Na
execução, no entanto, ela esbarra no mesmo problema de outra série do produtor
Chuck Lorre: The Big Bang Theory. Ao
invés de rir com os personagens, o texto quer que o público ria deles. Assim, da mesma forma que os
nerds se tornam o alvo das piadas, sendo constantemente tratados como indivíduos
ridículos e patéticos, Desenrolados
se contenta em apenas reproduzir os mesmos clichês rasos sobre maconheiros e
tem pouco a dizer sobre todo o debate da legalização, sendo mais conservadora
do que a premissa sugere.
A série é centrada em Ruth (Kathy
Bates), uma advogada defensora do uso de cannabis
que abre uma clínica de maconha medicinal junto com o filho Travis (Aaron
Moten). Os episódios acompanham o cotidiano de Ruth, Travis e os demais
funcionários da clínica conforme eles tentam educar a população sobre os
benefícios da maconha medicinal e ocasionalmente enfrentam resistência de
opositores.
O primeiro problema é que
praticamente todos os personagens são unidimensionais e tem apenas uma piada a
ser feita sobre eles que são repetidas à exaustão ao longo dos vinte episódios
divididos em duas partes pela Netflix. Travis é desajeitado com mulheres, Jenny
(Elizabeth Ho) é asiática (sim, a personagem é um mero estereótipo racial),
Pete (Dougie Baldwin) fala com suas plantas, Carter (Tone Bell) tem estresse
pós-traumático e Ruth é o clichê da hippie
velha. Kathy Bates é ótima e carismática, fazendo suas piadas funcionarem
mesmo quando o material não é grande coisa, mas não é suficiente para evitar o
cansaço da repetição. A grande maioria das situações cômicas envolvendo esses
personagens explora esse único traço e, logicamente, não há como sustentar isso
ao longo da temporada, tornando tudo bastante aborrecido.
A subtrama amorosa entre Travis e
Olivia (Elizabeth Alderfer) parece acontecer por pura necessidade de roteiro e
nunca há uma construção convincente dos motivos que um tem para gostar do
outro. Deste modo, todo o joguete narrativo de "será que eles vão ficar
juntos?" soa forçado e vazio, já que não temos qualquer razão para nos
importarmos com a construção desse relacionamento. Do mesmo modo o arco
narrativo envolvendo os bolinhos de Olivia parece não ter nenhum outro
propósito para além de fazer trocadilhos bobos (dignos daquele seu tio que
sempre faz a piada do pavê) sobre o fato deles se parecerem com cocô, como se a
simples menção de fezes bastasse para fazer rir.
Tudo piora quando a trama muda o
foco para os personagens secundários que são ainda mais aborrecidos. O casal
Dank (Chris Redd) e Dabby (Betsy Sodaro) são uma coleção de clichês sobre
maconheiros, sendo estúpidos, sem noção e seres humanos fundamentalmente
inúteis. O "humor" deles consiste em agir da maneira mais histérica
possível na esperança que seus gritos intimidem o espectador a rir, achando que basta ser exagerado para ser engraçado.
Em dado momento da temporada é
introduzida a CNNN, canal de notícias sobre o mundo da maconha e lógico que
todos os envolvidos na emissora são estúpidos, incompetentes e falam coisas sem
nexo porque na visão dos realizadores se alguém usa maconha, provavelmente é um
ser humano inferior incapaz de realizar qualquer coisa com o mínimo de
habilidade. O professor de artes marciais Doug (Michael Trucco) começa como uma
paródia do pensamento conservador de oposição à maconha, mas conforme a
temporada progride ele vai ficando progressivamente mais estúpido e caricato ao
ponto de se tornar tão sem graça quanto Dank e Dabby.
O pior mesmo é o arco envolvendo
Pete nos episódios finais quando a máquina que ele comprou para ajudar em sua
plantação de maconha ganha consciência, se rebela contra ele e passa a
controlá-lo por meio de um fone bluetooth,
sendo capaz inclusive de implantar informações em sua cabeça ao estilo Matrix.
No início cheguei a pensar que era a imaginação dele, mas quando até Doug
presencia as ações autônomas da máquina fica claro que tudo está acontecendo
"de verdade" e aí tudo fica difícil demais de aceitar. É algo tão
gratuito e fora de todo o regime de verossimilhança estabelecido pela série até
então que soa como um ato de desespero de uma equipe criativa exausta que
simplesmente coloca qualquer coisa no papel só para dar algo para o personagem
fazer.
É o tipo de expediente extremo (que costuma ser chamado de "saltar o tubarão" ou "jump the shark") que você até esperaria de uma série com algum tempo de existência que está
chegando ao esgotamento de suas possibilidades criativas. Que algo tão
incoerente e exagerado seja feito já na temporada de estreia deixa claro que a
série não possui fôlego para se sustentar por muito tempo.
Ocasionalmente a trama até tenta
falar sobre a importância do uso medicinal da maconha ao abordar a jornada de
Carter em lidar com seu estresse pós-traumático ou na fala dos jogadores de
futebol americano sobre como a cannabis ajuda a lidar com as dores. Esses
momentos, no entanto, são muito pouco frente à enorme quantidade de tempo gasto
pela trama em reforçar estereótipos anacrônicos sobre a maconha.
Há também a questão da variação
brusca de tom, que dificulta que nos conectemos com os momentos mais dramáticos
dos personagens. É difícil sair de uma situação completamente absurda e idiota
com Dank e Dabby para ir direto para uma cena na qual Walter (Peter Reigert)
informa Ruth que está com câncer terminal ou quando Carter confronta seus
traumas de guerra. Como a guinada para esses momentos de mais drama é feita de
maneira tão abrupta, fica difícil construir uma empatia quando segundos antes
(ou depois) a narrativa rapidamente nos joga em uma situação completamente
aloprada.
Falando em inconsistências, ao
longo da temporada são apresentados elementos que logo depois são esquecidos e
outros que surgem do nada. Em um episódio Carter aparece com um papagaio
de estimação (nunca é bom sinal quando uma sitcom
apela para animais engraçadinhos), mas depois desse episódio a ave nunca é
citada (ainda bem). O desejo de Carter em se tornar comediante é algo jogado de
modo bastante displicente pela narrativa, com Jenny casualmente mencionando as
intenções dele sendo que em nenhum outro momento isso tinha sido construído.
Como tudo parece jogado à esmo, fica difícil se importar, já que a qualquer
momento a trama pode resolver inventar do nada alguma outra coisa para o
personagem e varrer para debaixo do tapete o que tinha sido feito até então.
Igualmente gratuitos são os
breves "falsos comerciais" que na maioria das vezes não tem nada a
dizer que a trama já não diga (maconheiros são lerdos e inúteis) e interrompem
o fluxo da narrativa sem dar nada realmente interessante ao espectador. A
impressão é que eles existem simplesmente para encher a minutagem de um
episódio ao invés de acrescentar alguma coisa. Os segmentos animados por outro
lado, funcionam para mostrar o que se passa na mente dos personagens, suas
ansiedades e problemas, através de uma estética lisérgica que é bem apropriada
para traduzir o estado mental deles.
A sensação deixada por essa primeira temporada de Desenrolados é a de algo feito sem qualquer cuidado ou esforço que tenta apelar para os menores denominadores da comédia. Kathy Bates merecia uma série melhor.
Nota: 4/10
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