quinta-feira, 22 de março de 2018

Crítica - American Crime Story: O Assassinato de Gianni Versace


Análise American Crime Story: O Assassinato de Gianni Versace


Review American Crime Story: O Assassinato de Gianni Versace
A primeira temporada de American Crime Story me pegou de surpresa ao usar a história real do julgamento do ex-jogador de futebol americano O.J Simpson para fazer uma análise das obsessões e conflitos subjacentes da sociedade estadunidense. Imaginei que esta segunda temporada, baseada no assassinato do estilista Gianni Versace, também fosse usar o crime como um ponto de entrada para o exame dos problemas sociais dos Estados Unidos e de certa forma é o que acontece, ainda que a temporada não tenha a mesma força e contundência do seu ano de estreia.

A narrativa começa quando Gianni Versace (Edgar Ramirez) é assassinado na porta de sua casa pelo jovem Andrew Cunanan (Darren Criss), um rapaz com uma admiração pouco saudável pelo estilista. A partir de então a trama passa a acompanhar a caçada por Cunanan ao mesmo tempo em vai voltando no tempo para tentar entender as ações e motivações do assassino. Apesar do nome Versace no título, o estilista e sua família são meros coadjuvantes, aparecendo muito pouco ao longo da temporada. A história que a temporada conta pertence mais a Andrew do que a sua célebre vítima e embora eu entenda que o uso do nome Versace é uma decisão de cunho comercial, afinal ninguém nem sabe ou lembra do nome de Cunanan e colocá-lo no título provavelmente não chamaria tanta atenção. Ainda assim não consigo deixar de sentir que o título é relativamente desonesto com sua audiência e cria uma expectativa equivocada no espectador.

A decisão em apresentar a trama em uma cronologia invertida é outra escolha questionável desta temporada. Quando esse tipo de estrutura é usada em um filme, como Amnésia (2001) ou Irreversível (2002), cada segmento está há minutos de distância um do outro e não é difícil organizar tudo mentalmente e entender a cronologia do que acontece, bem como as relações entre os eventos e personagens. Em uma série exibida semanalmente, no entanto, as coisas não ficam tão frescas na memória entre um episódio e outro e muitas vezes eu demorava a reconhecer um personagem ou referência a algo porque era difícil me lembrar de tudo que aconteceu antes (mas cronologicamente depois, dentro daquele universo) para ter uma ideia clara do que a série queria dizer sobre seus personagens. Se fosse algo feito para streaming, com a temporada inteira disponibilizada de vez, talvez isso fosse menos problemático, mas do modo como é apresentado, fica mais confuso do que deveria.

Inclusive, não existe uma necessidade real para essa inversão temporal. Se em filmes como Amnésia (2001) a reversão temporal era essencial para que a obra transmitisse suas ideias sobre a dependência da memória na construção da identidade e como a realidade é uma construção subjetiva, aqui o jogo com a cronologia não parece ter qualquer motivação com a mensagem a ser comunicada. Todas as ideias sobre a tacanha homofobia que governava a sociedade estadunidense e a transformação de Cunanan em serial killer culminando na morte de Versace poderiam ser contadas cronologicamente sem grandes perdas.

Se a temporada anterior lidou com questões como feminicídio, racismo e o culto às celebridades, essa temporada é quase toda focada em uma espécie de antropologia da comunidade LGBT estadunidense nas décadas de 80 e 90. A série mostra como o preconceito obrigava os gays a se manterem no armário, evitando assumir sua sexualidade, já que fazer isso não só significava atrair a ojeriza da sociedade como também trazia ruína profissional, a exemplo do que acontece com um militar que cruza o caminho de Andrew. Ao serem obrigados a viver escondidos e se relacionarem com estranhos em encontros casuais, essa população ficava ainda mais vulnerável a ser vítimas de pessoas como Andrew. A homofobia também era uma das razões pelas quais Cunanan foi capaz de operar tantos anos impune, já que a polícia não se importava muito com um serial killer que matava gays, denotando como eles eram considerados cidadãos de segunda classe, cujas vidas eram tratadas como menos importantes.

A questão é que com apenas uma pauta temática ao longo de boa parte da temporada, com o tempo as coisas começam a ficar redundantes, deixando a impressão de que o roteiro já esgotou o que tinha a dizer sobre o tema e fica caminhando em círculos, sem muito mais a acrescentar. Nos dois últimos episódios a série amplia um pouco seu escopo temática ao lidar com a ideia do "sonho americano" de enriquecer rápido e fácil durante seu exame da complicada relação de Andrew com o pai, Modesto (Jon Jon Briones), mas até chegar aí há um miolo relativamente repetitivo.

Se tem algo que funciona de maneira irrepreensível de modo consistente ao longo da temporada é o trabalho de Darren Criss como Andrew Cunanan. Em uma daquelas performances que definem uma carreira, Criss concebe Cunanan como um jovem inteligente, engenhoso, capaz de manipular qualquer um, mas ainda assim extremamente vulnerável, carente e incapaz de lidar com a rejeição. Seu Cunanan remete ao Tom Ripley interpretado por Matt Damon em O Talentoso Ripley (1999) no sentido que é um sujeito tão desesperado por uma vida de luxo e por ser amado por todos ao seu redor que acaba se tornando inconveniente para qualquer um que lhe dê atenção. Quando as pessoas com quem se envolve eventualmente se cansam da presença intrusiva de Andrew, ele as rechaça com violência, matando-as para não ser rejeitado. Sua escolha de tirar suas vítimas do armário depois de matá-las, deixando as revistas pornô ou brinquedos sexuais dos mortos perto dos cadáveres é a maneira que Andrew encontra para causar sobre suas vítimas, mesmo depois de mortas, a mesma rejeição que ele crê ter sido submetido, punindo-as por sua recusa em assumir o afeto que sentiam por ele.

Ao observar a relação de Andrew com o pai, a série também permite que compreendamos como ele criou para si essa impressão de ser especial e de que merece que todos lhe deem tudo de melhor. Mimado pelo pai em detrimento dos demais irmãos e recebendo dele o discurso de que era alguém extraordinário, mesmo sem ter feito nada para merecer esse tratamento, Andrew segue pela vida achando que merece afeto e riqueza só por ser ele mesmo, logicamente não sendo capaz de lidar com a frustração da rejeição. Apesar de nos dar razões para entender como Cunanan se tornou esse assassino serial, a narrativa não chega a exatamente pintá-lo como uma vítima ou um anti-herói, exibindo plena consciência da monstruosidade de seu protagonista e como suas ações destruíram as vidas de inocentes que nunca causaram mal a ninguém, com muitos deles inclusive lutando para deixar um impacto positivo no mundo.

Além do trabalho de Darren Criss, há de se destacar também a performance de Finn Wittrock (que interpretou o vilão de American Horror Story Freak Show) como Jeffrey Trail, uma das vítimas de Andrew. Trail era um militar gay que nunca tinha saído do armário por medo de perder sua carreira, mas quando presencia atos explícitos de homofobia contra outros colegas de farda, fica dividido entre fazer a coisa certa e denunciar o preconceito da corporação ou se manter calado para manter intacto seu sonho de trabalhar nas forças armadas. Wittrock é hábil em construir tanto o conflito interno do personagem quanto seu sentimento de perda e frustração depois que ele leva suas denúncias para a imprensa e é levado a deixar seu trabalho. O ator nos permite sentir a dor e amargura de alguém que foi negado acesso ao seu sonho simplesmente por conta de sua sexualidade.

Como o personagem que dá o título à temporada, Edgar Ramirez tem pouco a fazer como Gianni Versace, já que o texto lhe dá muito pouco tempo de tela. Seu único momento interessante ocorre lá pela metade da temporada quando a narrativa explora a decisão dele em assumir publicamente sua sexualidade e como, mesmo para alguém na posição de riqueza e influência dele, isso representava um grande risco profissional. Mesmo com um tempo também reduzido, Penelope Cruz consegue ser mais marcante com sua Donatella Versace, mostrando a irmã do estilista como alguém rigidamente pragmática, que mesmo em seu luto e tristeza se mantém firme para preservar o controle da empresa e do legado criado por seu irmão.

Apesar de uma estrutura narrativa desnecessariamente confusa e ocasionais redundâncias na construção de seu principal argumento, American Crime Story: O Assassinato de Gianni Versace funciona pela performance intensa de Darren Criss e a contundência de seu olhar sobre as consequências da homofobia. Não chega a causar o mesmo impacto que O Povo Contra O.J Simpson, mas não deixa de ser competente.


Nota: 8/10


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