terça-feira, 24 de abril de 2018

Crítica - Praça Paris


Análise Crítica - Praça Paris


Review - Praça Paris
O cinema brasileiro vem cada vez mais produzindo filmes sobre os inerentes conflitos de classe social e suas consequências na sociedade brasileira. Obras como O Som ao Redor (2012) ou Que Horas Ela Volta? (2015) trataram a questão sob diferentes olhares e a cineasta Lucia Murat agrega ao debate com este Praça Paris.

A trama é centrada em duas mulheres. Camila (Joana de Verona) é uma terapeuta portuguesa que trabalha em uma universidade no Rio de Janeiro. Ela começa a tratar Glória (Grace Passô), ascensorista da universidade, e ao poucos a portuguesa vai conhecendo um cotidiano de violência que até então desconhecia conforme Glória relata os estupros que sofreu do pai na infância e a entrada de seu irmão mais novo no tráfico. Conforme escuta os relatos de Glória, Camila passa a ficar cada vez mais assustada com a maneira tranquila que Glória relata a violência ao seu redor, ao mesmo tempo em que Glória passa a depender cada vez mais da terapia.

A atriz Grace Passô é excelente ao construir Glória como uma personagem cheia de ambiguidades e contradições. Ela é alguém que claramente sofre com o peso da violência que testemunhou ao longo de sua vida, mas por não conhecer nenhuma outra solução além da própria violência. Simultaneamente vítima e algoz por conta das dificuldades de sua vida, Glória é alguém cuja fala muitas vezes transita entre a vulnerabilidade e ameaça, nos deixando incertos das reais intenções da personagem durante boa parte do filme.

Diante de uma personagem com tanta complexidade, o arco de Camila acaba soando menos interessante já que ele não faz muito além de explorar o medo crescente da personagem diante de sua aproximação de uma violência que até então desconhecia. A trama consegue criar bons momentos de tensão envolvendo Camila, mas fica a impressão que a jornada poderia ser melhor aproveitada. Eu entendo que o filme quis usar a personagem de Camila como uma representação do medo constante da classe média brasileira com a violência urbana e uma espécie de "culpa inconsciente" a respeito das desigualdades sociais, mas ao focar que o medo da terapeuta nasce quase que totalmente de seu contato com Glória, a trama mantém a questão em um nível pessoal, sem observar que esse constante sentimento de ameaça da classe média branca tem outros fatores.

Sim, em muitos momentos o filme contrapõe o cotidiano de Camila com o de Glória para evidenciar a vida de privilégios que a terapeuta em contraponto com as dificuldades vividas por Glória. A questão é que o material não chega a confrontar Camila com fato de que boa parte de seu temor em relação a Glória vem justamente do distanciamento que ela vive da realidade da paciente em virtude de sua vida de privilégio. Por ser portuguesa, Camila também tem uma visão bem colonialista (e de certo modo um sentimento de superioridade) em relação ao Brasil e o texto aborda isso de modo passageiro, sem se deter muito sobre o fato de que a postura dela se relaciona diretamente com seu medo ou fazer a personagem confrontar suas próprias hipocrisias e contradições. Desta maneira, fica a impressão de que em muitos momentos o filme apenas quer que vejamos Camila meramente como vítima, o que tira a força do discurso que a narrativa tenta construir sobre a relação da classe média com a violência urbana. É apenas no final que a trama de Camila nos atinge com a contundência que deveria quando presenciamos as consequências injustas da postura preconceituosa dela.

Ainda assim, o roteiro acerta ao fugir de muitas obviedades desse tipo de história envolvendo terapeuta e paciente. Imaginei que o texto seguiria o padrão de colocar pessoas diferentes enxergando as similaridades uma das outras e aprendendo valiosas lições de vida. Felizmente o material escrito por Lucia Murat e Raphael Montes foge desse tipo de lugar comum e tece uma trama na qual o desenvolvimento da terapia produz mais afastamento do que aproximação conforme se evidencia o abismo que há entre elas. O texto também é esperto o bastante para evitar uma solução fácil e reconhece como o racismo e a violência urbana são problemas complexos e cuja solução parece improvável a curto, médio ou mesmo a longo prazo.

Ainda que o arco de uma das personagens não funcione como deveria, Praça Paris se sustenta pelo trabalho de Grace Passô e a discussão que levanta sobre violência urbana.


Nota: 7/10


Trailer

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