O cinema brasileiro vem cada vez
mais produzindo filmes sobre os inerentes conflitos de classe social e suas
consequências na sociedade brasileira. Obras como O Som ao Redor (2012) ou Que Horas Ela Volta? (2015) trataram a questão sob diferentes olhares e a
cineasta Lucia Murat agrega ao debate com este Praça Paris.
A trama é centrada em duas
mulheres. Camila (Joana de Verona) é uma terapeuta portuguesa que trabalha em
uma universidade no Rio de Janeiro. Ela começa a tratar Glória (Grace Passô),
ascensorista da universidade, e ao poucos a portuguesa vai conhecendo um
cotidiano de violência que até então desconhecia conforme Glória relata os
estupros que sofreu do pai na infância e a entrada de seu irmão mais novo no
tráfico. Conforme escuta os relatos de Glória, Camila passa a ficar cada vez
mais assustada com a maneira tranquila que Glória relata a violência ao seu
redor, ao mesmo tempo em que Glória passa a depender cada vez mais da terapia.
A atriz Grace Passô é excelente
ao construir Glória como uma personagem cheia de ambiguidades e contradições.
Ela é alguém que claramente sofre com o peso da violência que testemunhou ao
longo de sua vida, mas por não conhecer nenhuma outra solução além da própria
violência. Simultaneamente vítima e algoz por conta das dificuldades de sua
vida, Glória é alguém cuja fala muitas vezes transita entre a vulnerabilidade e
ameaça, nos deixando incertos das reais intenções da personagem durante boa
parte do filme.
Diante de uma personagem com
tanta complexidade, o arco de Camila acaba soando menos interessante já que ele
não faz muito além de explorar o medo crescente da personagem diante de sua
aproximação de uma violência que até então desconhecia. A trama consegue criar
bons momentos de tensão envolvendo Camila, mas fica a impressão que a jornada
poderia ser melhor aproveitada. Eu entendo que o filme quis usar a personagem
de Camila como uma representação do medo constante da classe média brasileira
com a violência urbana e uma espécie de "culpa inconsciente" a
respeito das desigualdades sociais, mas ao focar que o medo da terapeuta nasce
quase que totalmente de seu contato com Glória, a trama mantém a questão em um
nível pessoal, sem observar que esse constante sentimento de ameaça da classe
média branca tem outros fatores.
Sim, em muitos momentos o filme
contrapõe o cotidiano de Camila com o de Glória para evidenciar a vida de
privilégios que a terapeuta em contraponto com as dificuldades vividas por
Glória. A questão é que o material não chega a confrontar Camila com fato de
que boa parte de seu temor em relação a Glória vem justamente do distanciamento
que ela vive da realidade da paciente em virtude de sua vida de privilégio. Por
ser portuguesa, Camila também tem uma visão bem colonialista (e de certo modo
um sentimento de superioridade) em relação ao Brasil e o texto aborda isso de
modo passageiro, sem se deter muito sobre o fato de que a postura dela se
relaciona diretamente com seu medo ou fazer a personagem confrontar suas
próprias hipocrisias e contradições. Desta maneira, fica a impressão de que em
muitos momentos o filme apenas quer que vejamos Camila meramente como vítima, o
que tira a força do discurso que a narrativa tenta construir sobre a relação da
classe média com a violência urbana. É apenas no final que a trama de Camila
nos atinge com a contundência que deveria quando presenciamos as consequências
injustas da postura preconceituosa dela.
Ainda assim, o roteiro acerta ao
fugir de muitas obviedades desse tipo de história envolvendo terapeuta e
paciente. Imaginei que o texto seguiria o padrão de colocar pessoas diferentes
enxergando as similaridades uma das outras e aprendendo valiosas lições de
vida. Felizmente o material escrito por Lucia Murat e Raphael Montes foge desse
tipo de lugar comum e tece uma trama na qual o desenvolvimento da terapia
produz mais afastamento do que aproximação conforme se evidencia o abismo que
há entre elas. O texto também é esperto o bastante para evitar uma solução
fácil e reconhece como o racismo e a violência urbana são problemas complexos e
cuja solução parece improvável a curto, médio ou mesmo a longo prazo.
Ainda que o arco de uma das
personagens não funcione como deveria, Praça
Paris se sustenta pelo trabalho de Grace Passô e a discussão que levanta
sobre violência urbana.
Nota: 7/10
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