Desobediência podia ser meramente um filme sobre repressão
religiosa. Não deixa de abordar esse tema, mas também vai um pouco além disso
ao abordar questões de tradicionalismo versus liberdade individual, assim como
os conflitos que emergem quando alguém simultaneamente se sente parte de uma
comunidade e deslocado dela.
Depois de décadas afastada, Ronit
(Rachel Weisz) retorna à comunidade judia ortodoxa na qual cresceu. O motivo do
retorno é o falecimento do seu pai, o respeitado rabino da comunidade. Mesmo
com um motivo tão forte para voltar, as pessoas da comunidade a olham com
estranhamento, como se ela não devesse estar ali. Apenas Dovid (Alessandro
Nivola), um antigo amigo de infância, recebe Ronit com algum tipo de compaixão
e empatia, hospedando-a em sua casa. Dovid, por sinal, é casado com Esti
(Rachel McAdams), também amiga de Ronit na juventude, e com o tempo as duas
reacendem um sentimento há muito adormecido.
O diretor chileno Sebastián
Lelio, responsável pelo vencedor do Oscar de filme estrangeiro Uma Mulher Fantástica (2017), conduz
tudo com um olhar discreto, permitindo que os conflitos emerjam do trabalho dos
atores, das interações e dos pequenos gestos trocados entre eles.
Isso fica evidente no momento em
que Ronit se aproxima para tocar Dovid e ele se afasta, já que naquela
comunidade ortodoxa não é permitido que um homem e uma mulher se toquem sem
serem casados. O instante não só revela o quanto Ronit está distante das
práticas daquele lugar, como também o distanciamento físico e emocional entre
ela e o antigo amigo de infância. Esse sentimento de deslocamento é também
percebido nos segmentos em que a personagem sai de casa usando peruca, algo que
as mulheres daquela comunidade fazem, mas é vista com estranhamento pelas
pessoas, como se Ronit se apropriasse de um hábito (ou costume) que não lhe
pertence.
Tanto Rachel Weisz como Rachel
McAdams são ótimas ao apresentarem suas duas personagens em uma constante
negociação entre quem elas são (ou querem ser) e quem a sociedade espera que
elas sejam. Há uma clara oposição entre a frieza com a qual ambas transam com
homens nos momentos iniciais do filme e a paixão que elas demonstram quando vão
para cama juntas em uma cena que consegue ser sensual sem, no entanto, fetichizar
as duas personagens. O momento funciona como um momento de libertação para
elas, como se finalmente pudessem dar vazão a sentimentos que ficaram
reprimidos por muito tempo.
Embora seja com Ronit que
passamos a maior parte do tempo, é de Esti o principal conflito da narrativa.
Enquanto Ronit está muito mais afastada das tradições da comunidade por conta
do tempo que passou longe, Esti está mais próxima dos costumes locais. Ela tem
um sentimento genuíno por Ronit, mas também está enraizada na comunidade e tem
clara satisfação em seu trabalho como professora. Esti aprendeu a apreciar seu
modo de vida ainda que perceba que ele não se adeque completamente a quem ela é
e McAdams faz todos esses sentimentos conflitantes emergirem de modo tocante.
Seria fácil para um filme com
essa temática reduzir Dovid a um mero obstáculo para o amor das duas
protagonistas, mas o texto faz dele alguém tão em conflito quanto as duas. Como
possível rabino da comunidade, ele sente uma responsabilidade em manter os
valores e tradições do local, mas demonstra empatia e afeto suficiente para
perceber que nada de bom virá de reprimir Esti e mantê-la em um casamento sem
amor apenas para consolidar sua posição de líder religioso.
Não é à toa que uma das cenas
mais contundentes do filme seja o momento em que Dovid se dirige à população
durante o funeral do pai de Ronit. A fala dele sobre o livre-arbítrio como
qualidade essencial da humanidade e vulnerabilidade que ele exibe perante os
rígidos dogmas sob os quais vive serve como um espelhamento preciso da cena
inicial do filme e também como meio de amarrar as relações entre os principais
personagens da trama. A questão é que depois dessa cena o filme se alonga um
pouco mais do que deveria para finalmente mostrar o que já imaginávamos que
aconteceria.
Cheio de sensibilidade e com um
trio de protagonistas eficiente em capturar a complexidade da situação de seus
personagens, Desobediência é um
competente estudo sobre tradição e identidade.
Nota: 8/10
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