quinta-feira, 21 de junho de 2018

Crítica – Desobediência


Resenha Crítica – Desobediência


Review – Desobediência
Desobediência podia ser meramente um filme sobre repressão religiosa. Não deixa de abordar esse tema, mas também vai um pouco além disso ao abordar questões de tradicionalismo versus liberdade individual, assim como os conflitos que emergem quando alguém simultaneamente se sente parte de uma comunidade e deslocado dela.

Depois de décadas afastada, Ronit (Rachel Weisz) retorna à comunidade judia ortodoxa na qual cresceu. O motivo do retorno é o falecimento do seu pai, o respeitado rabino da comunidade. Mesmo com um motivo tão forte para voltar, as pessoas da comunidade a olham com estranhamento, como se ela não devesse estar ali. Apenas Dovid (Alessandro Nivola), um antigo amigo de infância, recebe Ronit com algum tipo de compaixão e empatia, hospedando-a em sua casa. Dovid, por sinal, é casado com Esti (Rachel McAdams), também amiga de Ronit na juventude, e com o tempo as duas reacendem um sentimento há muito adormecido.

O diretor chileno Sebastián Lelio, responsável pelo vencedor do Oscar de filme estrangeiro Uma Mulher Fantástica (2017), conduz tudo com um olhar discreto, permitindo que os conflitos emerjam do trabalho dos atores, das interações e dos pequenos gestos trocados entre eles.

Isso fica evidente no momento em que Ronit se aproxima para tocar Dovid e ele se afasta, já que naquela comunidade ortodoxa não é permitido que um homem e uma mulher se toquem sem serem casados. O instante não só revela o quanto Ronit está distante das práticas daquele lugar, como também o distanciamento físico e emocional entre ela e o antigo amigo de infância. Esse sentimento de deslocamento é também percebido nos segmentos em que a personagem sai de casa usando peruca, algo que as mulheres daquela comunidade fazem, mas é vista com estranhamento pelas pessoas, como se Ronit se apropriasse de um hábito (ou costume) que não lhe pertence.

Tanto Rachel Weisz como Rachel McAdams são ótimas ao apresentarem suas duas personagens em uma constante negociação entre quem elas são (ou querem ser) e quem a sociedade espera que elas sejam. Há uma clara oposição entre a frieza com a qual ambas transam com homens nos momentos iniciais do filme e a paixão que elas demonstram quando vão para cama juntas em uma cena que consegue ser sensual sem, no entanto, fetichizar as duas personagens. O momento funciona como um momento de libertação para elas, como se finalmente pudessem dar vazão a sentimentos que ficaram reprimidos por muito tempo.

Embora seja com Ronit que passamos a maior parte do tempo, é de Esti o principal conflito da narrativa. Enquanto Ronit está muito mais afastada das tradições da comunidade por conta do tempo que passou longe, Esti está mais próxima dos costumes locais. Ela tem um sentimento genuíno por Ronit, mas também está enraizada na comunidade e tem clara satisfação em seu trabalho como professora. Esti aprendeu a apreciar seu modo de vida ainda que perceba que ele não se adeque completamente a quem ela é e McAdams faz todos esses sentimentos conflitantes emergirem de modo tocante.

Seria fácil para um filme com essa temática reduzir Dovid a um mero obstáculo para o amor das duas protagonistas, mas o texto faz dele alguém tão em conflito quanto as duas. Como possível rabino da comunidade, ele sente uma responsabilidade em manter os valores e tradições do local, mas demonstra empatia e afeto suficiente para perceber que nada de bom virá de reprimir Esti e mantê-la em um casamento sem amor apenas para consolidar sua posição de líder religioso.

Não é à toa que uma das cenas mais contundentes do filme seja o momento em que Dovid se dirige à população durante o funeral do pai de Ronit. A fala dele sobre o livre-arbítrio como qualidade essencial da humanidade e vulnerabilidade que ele exibe perante os rígidos dogmas sob os quais vive serve como um espelhamento preciso da cena inicial do filme e também como meio de amarrar as relações entre os principais personagens da trama. A questão é que depois dessa cena o filme se alonga um pouco mais do que deveria para finalmente mostrar o que já imaginávamos que aconteceria.

Cheio de sensibilidade e com um trio de protagonistas eficiente em capturar a complexidade da situação de seus personagens, Desobediência é um competente estudo sobre tradição e identidade.


Nota: 8/10


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