À distância Hereditário parece mais um filme de terror sobre casas mal
assombradas e possessões demoníacas, mas sob a sua premissa bastante
tradicional há uma trama sobre nossa indelével conexão com nossas famílias e
como somos inevitavelmente confrontados com as consequências das escolhas
feitas por nossos pais e avós.
A trama começa quando a mãe da
artista plástica Annie (Toni Colette) morre e deixa toda a família em estado de
luto. As principais afetadas pela perda são Annie, que tinha uma relação cheia
de animosidade e ressentimento pela falecida mãe, o que significa que agora
todos esses problemas da relação jamais serão resolvidos, e Charlie (Milly
Shapiro), a estranha filha caçula de Annie. Praticamente criada pela avó, Charlie
é a mais deprimida com a sua morte, começando a exibir um estranho
comportamento.
Como qualquer outro filme de
terror, não demora a acontecerem coisas estranhas e sinistras na casa de Annie,
mas tal como exemplares recentes do gênero, a exemplo de A Bruxa (2016) ou Raw
(2016) Hereditário joga com nossa
percepção do que está acontecendo, nos deixando em dúvida se de fato estamos
diante de casos de assombração e possessão ou se aqueles personagens estão
surtando, já que a trama nos dá razões suficientes para duvidar da sanidade
deles. O medo aqui emerge do não saber, do confronto com o desconhecido.
O filme consegue criar imagens
sinistras a partir das miniaturas esculpidas por Annie, muitas vezes
filmando-as em proximidade de modo a criar incerteza se estamos diante de um
cenário “real” dentro daquele universo ou se o que vemos é apenas uma
miniatura. Outro modo com o qual o filme tenta nos desorientar em relação à
realidade naquele universo é no seu uso de jump
cuts (cortes súbitos e abruptos) para retratar a passagem entre dia e noite
ou outras elipses temporais, criando uma incerteza em relação à passagem do
tempo.
O modo como a fotografia explora
os contrastes entre luz e sombras para criar uma atmosfera tenebrosa,
principalmente pelo uso de cores fortes, como o intenso vermelho que emerge do
aquecedor da casa da árvore, quase como se o local fosse o portal para o
inferno. A fotografia também se vale de reflexos e refrações de luz que
constantemente vagueiam pelos cenários e cujas fontes nunca são mostradas,
deixando dúvida se estamos diante de algo banal ou se são algum tipo de
manifestação espiritual ou sobrenatural.
Além desses recursos mais sutis
para criar uma atmosfera de temor e tensão, a trama ocasionalmente recorre a
imagens mais explícitas, como a cabeça decepada e decomposta que vemos em
determinado momento e que permanece assombrando minha memória mesmo dias depois
de ter visto o filme. O diretor Ari Aster consegue criar uma tensão intensa até
mesmo durante incidentes que claramente não possuem nada de sobrenatural, como
a cena em que Charlie tem uma crise alérgica depois de comer nozes e Peter
(Alex Wolff), o irmão mais velho dela, dirige apressado para levá-la ao
hospital. Mantendo a câmera em Charlie durante boa parte da cena, o filme não
nos poupa da agonia sufocante da menina.
Parte dos méritos do filme
repousam também em seu elenco. A garota Milly Shapiro torna a postura retraída
e silenciosa de Charlie em algo sinistro, principalmente por seu hábito de
confeccionar estranhos brinquedos ou recolher animais mortos. O hábito da
menina em constantemente fazer um som de estalo com a língua é usado muitas
vezes como fonte de sustos, com o filme usando sons similares para sugerir a
presença dela em ambientes nos quais ela não deveria estar. Ann Dowd traz um
magnetismo arrepiante como a conselheira de luto de Annie (e você sabe que é um
filme de terror quando a conselheira de luto é a Tia Lydia de The Handmaid’s Tale), cuja conduta
excessivamente gentil parece esconder toda sorte de intenções sombrias.
Toni Colette, por sua vez, é
bastante eficiente em convencer da crescente instabilidade da personagem diante
dos eventos estranhos que começam a acontecer. De início ela parece entorpecida
pela dor, depois devastada quando uma tragédia ainda maior se abate sobre ela e
aos poucos essa dor vai dando vazão ao desespero e à raiva, fazendo emergir
traumas e rancores antigos entre ela e o restante de sua família. A atriz
protagoniza um dos momentos mais assustadores do filme quando Annie aparentemente
“incorpora” uma criança durante uma sessão espírita, mas o texto da à cena
ambiguidade suficiente para criar dúvida se Annie estava de fato possuída ou se
era mais um de seus episódios de sonambulismo. Na verdade, todo o clímax pode
ser entendido tanto de maneira literal quanto metafórica, simbolizando o surto
irreversível de alguns personagens.
Hereditário acaba sendo extremamente hábil em criar uma atmosfera
de constante tensão e incerteza conforme usa estruturas típicas do terror para
nos fazer um tenebroso lembrete sobre como a convivência familiar molda quem somos de uma maneira irrefreável. É daqueles filmes que continuam a nos assombrar mesmo dias depois das luzes da sala de cinema terem se acendido.
Nota: 9/10
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