Em 14 de maio de 1998 era exibido
The Finale episódio final da série Seinfeld, que durou nove temporadas, foi
um fenômeno da televisão, constantemente aparecendo em listas de melhores
séries de todos os tempos, e tornou seu criador, o comediante Jerry Seinfeld,
em um bilionário. Aproveitando o aniversário de vinte anos do fim da série (eu
planejava ter esse texto pronto no dia exato dos vintes anos, mas infelizmente
não pude), vou tentar refletir um pouco sobre o impacto que ela teve na
paisagem televisiva da sua época e porque ela foi tão celebrada.
Uma série sobre "nada"?
O principal "argumento"
de venda das publicidades da série, que é usado até hoje, é o fato de que a
série era supostamente "sobre nada". O que isso quer dizer? Que a
série não tinha enredo ou construção temática? Se olharmos os episódios em si,
veremos que não é o caso. É bem fácil afirmar que Seinfeld é "sobre alguma coisa". Eu poderia dizer que
sobre um grupo de adultos imaturos, egoístas e neuróticos, que é sobre a vida
na cidade de Nova Iorque, então nesse sentido não seria uma série "sobre
nada".
Isso significa que todo o
discurso da série era uma grande mentira? Um engodo muito bem engendrado pelos
criadores Jerry Seinfeld e Larry David? Será que nos vinte e nove anos desde a
estreia da série eu fui a única pessoa lúcida a ver através das mentiras que a
publicidade televisiva contou a todos nós? A resposta para todas essas três
perguntas é um sonoro "não". Eu não sou tão esperto assim e os
responsáveis pela série não estavam exatamente mentindo. Na verdade, o que se
quer dizer quando dizemos que Seinfeld
é sobre "nada" é que série é sobre "nada do que era tipicamente
tratado numa sitcom
estadunidense".
O que isso quer dizer exatamente?
Bem, para explicar isso, é preciso fazer um breve passeio pela história da sitcom na televisão dos EUA. No início
da televisão, a maioria das sitcoms
televisivas, a exemplo de I Love Lucy
(1951-1957) ou Papai Sabe Tudo (1954-1960),
era sobre famílias. Ao longo de episódios de cerca de trinta minutos essas
famílias, compostas por pais, mães, filhos e agregados, lidavam com problemas
do cotidiano e da vida familiar, com cada personagem precisando da ajuda de
algum outro membro da família para resolver suas questões. Assim, ao final de
cada episódio esses personagens reforçavam os laços que tinham entre si,
aprendiam lições sobre a vida, si mesmos ou seus parentes (isso era tão comum
que South Park parodiava esses
clichês colocando Stan ou Kyle para fazer um discurso de "aprendi algo
hoje" no fim dos episódios das primeiras temporadas), evidenciando a
família como unidade central da sociedade. Esse modelo de sitcom centrado na unidade familiar permanece até hoje em séries
como Who's The Boss (1984-1992), Full House (1987-1995) ou Modern
Family (2009 -).
Nos anos de 1970 as coisas
mudaram um pouco com séries como The Mary
Tyler Moore Show (1970-1977). A série era centrada em Mary Richards (Mary
Tyler Moore), uma mulher solteira e bem sucedida que trabalhava como produtora
de uma emissora de televisão. Ao invés do núcleo familiar, Mary tinha um núcleo
de colegas de trabalho, mas a estrutura das tramas era praticamente a mesma,
eles resolviam problemas contando com a ajuda um do outro, forjavam laços entre
si, aprendiam e amadureciam, a diferença básica é que o trabalho substituía a
família como unidade central da sociedade. Assim, The Mary Tyler Moore Show foi uma das precursoras do que viria a
ser chamado de workplace comedies,
comédias que se passavam em ambientes de trabalho que são produzidas até hoje
como Taxi (1978-1983), Wings (1990-1997), The Office (2005-2013), Parks
& Recreation (2009-2015) ou mesmo Brooklyn
9-9 (2013 -).
A "paisagem" das sitcoms nos EUA mudaria novamente na
década de 80 com o enorme sucesso de Cheers
(1982-1993), uma série que se passava em um bar de Boston e acompanhava a
vida dos clientes e funcionários do estabelecimento. O que unia eles não eram
as relações familiares ou apenas relações de trabalho, já que boa parte dos
personagens eram clientes, mas a amizade. O tipo de tramas seguia similar e
esses personagens ajudavam uns aos outros e aprendiam uns com outros,
deslocando para um núcleo de amizades o papel social central que antes era da
família ou dos colegas de trabalho. Assim como os outros modelos, este
sobrevive até hoje em Friends
(1994-2004) ou How I Met Your Mother
(2005-2014).
O que Seinfeld tem a ver com tudo isso ou em que aspecto isso a torna uma
série sobre "nada"? Afinal, a série também não é sobre um grupo de
amigos? Bem, sim, a série é focada em um grupo de amigos, Jerry (Jerry
Seinfeld), George (Jason Alexander), Elaine (Julia Louis Dreyfus) e Kramer
(Michael Richards), mas o que torna diferente é como ela constrói as relações
entre eles, ou melhor, não constrói. A melhor maneira de explicar isso é
através do mantra que o criador Larry David tinha como guia para desenvolver os
roteiros: "nada de abraços, nada de lições".
Os personagens da série são
imaturos, fúteis, mesquinhos e egocêntricos, ao longo dos episódios e da
própria série, eles não passam por nenhuma experiência de amadurecimento, não
aprendem nada sobre si mesmos ou sobre uns aos outros, não forjam qualquer laço
significativo com mais ninguém. Eles são as mesmas pessoas ao longo das nove
temporadas e a graça da série é justamente o fato das tramas exporem esses
personagens ao ridículo, de vermos o comportamento neurótico e infantil dessas
pessoas se voltar contra elas em consequências cada vez mais hilárias e
absurdas. É nesse sentido que Seinfeld
é uma série sobre "nada", já que ela não tem nada que marcava as sitcoms televisivas dos EUA até então,
sendo uma espécie de sitcom anti-sitcom e talvez seja por isso que ela
tenha sido tão marcante e permaneça em nossas memórias até hoje. Claro, outras
séries surgiram com uma abordagem semelhante a exemplo de It's Always Sunny in Philadelphia (2005 -) que também apresenta um
grupo de personagens egoístas, infantilizados e superficiais que nunca aprende
nada.
Quebrando tabus
Outro motivo de Seinfeld continuar sendo uma referência
tão grande e continua a ser lembrada mesmo vinte anos depois do seu final é o
modo como ela conseguia falar de coisas que séries de televisão aberta nos
Estados Unidos não abordavam naquela época. Um exemplo é The Contest, décimo primeiro episódio da quinta temporada. A trama
do episódio girava em torno dos quatro personagens fazendo uma aposta sobre
quem conseguiria ficar mais tempo sem se masturbar.
Segundo depoimentos do elenco e
do roteirista Larry David, a emissora estava disposta a barrar a realização do
episódio, já que programas de televisão aberta em 1992 (quando o episódio foi
exibido), não falavam abertamente sobre masturbação. Os executivos cederam
quando viram o roteiro do episódio, que tratava tudo de maneira implícita,
recorrendo a metáforas que deixava claro do que os personagens falavam sem
precisar mencionar diretamente, o que só deixava tudo mais engraçado.
A mesma quarta temporada continha
o episódio The Outing, no qual uma
repórter encarregava de entrevistar Jerry ficava com a impressão de que ele era
gay e namorava George. Falar sobre homossexualidade também não era algo que a
televisão aberta costumava fazer em 1992 e o episódio tem o cuidado de deixar
claro que não está fazendo piada ou ridicularizando os gays, mas o frágil ego
heterossexual de Jerry e George que sentem necessidade de defender a própria
sexualidade. Daí o famoso bordão "não que tenha nada errado com
isso", toda vez que eles precisam explicar que não são gays.
Para além das temáticas, Seinfeld também brincou com a estrutura
de seus episódios e o formato de uma sitcom
típica. Antes da série 24 Horas (que
estreou em 2001) conquistar o público com seus episódios em tempo real, Seinfeld já fazia isso no episódio da
segunda temporada The Chinese Restaurant,
exibido em 1991. Todo em tempo real, o episódio acompanhava Jerry, George e
Elaine enquanto eles esperavam por uma mesa em um restaurante chinês e toda
sorte de situação absurda acontecia com eles. Do mesmo modo, bem antes de Amnésia (2001) dar um nó na cabeça de
todo mundo com sua trama em cronologia invertida, Seinfeld já tinha feito um episódio com toda a história contada de
trás para frente em sua nona temporada no episódio The Betrayal, exibido em 1997. Lógico, não estou aqui defendendo
que Seinfeld serviu de inspiração direta
para essas obras, mas demonstra como a série estava a frente do seu tempo e
experimentava com estruturas que se tornariam muito populares anos depois.
É justamente por suas
experimentações, brincadeiras com a forma e conteúdo da sitcom televisiva, fazendo coisas que nenhuma outra sitcom tinha feito até então, que Seinfeld foi uma série tão marcante e
influente, permanecendo em nossas memórias até hoje. Entender as razões que
levaram ao sucesso da série é também compreender a trajetória do gênero na
televisão estadunidense.
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