Em Garota Exemplar (2014), filme que foi um dos objetos da minha tese
de doutorado, o texto da romancista Gillian Flynn mostrava uma visão bastante
sombria sobre relações matrimoniais. Esta minissérie Objetos Cortantes adapta outro romance de Flynn e mais uma vez tece
uma trama soturna sobre a vida em família, dessa vez focando em relações
parentais.
Camille Preaker (Amy Adams) é uma
repórter da cidade de Saint Louis que é mandada de volta para Wind Gap, a
cidadezinha do Missouri na qual cresceu, para cobrir o assassinato brutal de
duas adolescentes. Em Wind Gap ela reencontra a família com quem não fala há
anos: sua controladora mãe, Adora (Patricia Clarkson), a meia-irmã Amma (Eliza
Scanlen) e o padrasto Alan (Henry Czerny). O reencontro abre feridas antigas e
o trauma de Camille em ter perdido a irmã, Marion, ainda jovem. Assim, Camille
precisa lidar tanto com as dificuldades da investigação quanto com seus
problemas emocionais mal resolvidos.
A trama é claramente mais focada
na jornada emocional de Camille do que na investigação em si, o que pode
decepcionar que está em busca de uma trama policial mais tradicional, mas a
escolha resulta em envolvente, e por vezes aterrador, estudo de personagem
conforme passeamos pela mente fraturada da protagonista. O diretor Jean Marc
Valée, responsável por Big Little Lies,
constrói a trama com uma montagem abrupta, que constantemente corta para flashbacks de Camille, nos mergulhando
no fluxo de consciência dela e evidenciando como todos os traumas passados
ainda são totalmente presentes na cabeça da personagem. Essas fusões de
passado, presente e viagens pela mente de Camille conferem um ar de delírio
febril às imagens similar ao que acontecia em True Detective, flertando com o terror em muitos momentos.
As marcas da perda da irmã e da
relação complicada com a mãe opressora literalmente são visíveis no corpo da
protagonista, visto que seu hábito de se cortar é uma maneira de externar
sentimentos que ela não sabe como lidar ou falar, bem como uma espécie de
penitência por uma culpa que não consegue expurgar. Amy Adams compõe a
personagem como alguém levada ao limite, já que os crimes e o reencontro com a
família constantemente a fazem reviver seus traumas e apesar de ser uma sagaz repórter,
Adams nos deixa perceber que Camille está muito próxima de ser levada ao limite
pela situação.
A ideia de que ela se machuca
como uma forma de penitência ou autopunição não se limita aos danos físicos que
causa a si mesma, mas também pela maneira com a qual (talvez inconscientemente)
sabota a relação que constrói com o policial Richard (Chris Messina, que já
tinha sido o interesse amoroso de Adams em Julie
& Julia).
Patricia Clarkson, por sua vez,
faz de Adora alguém de estados emocionais extremos, variando da afabilidade à
histeria, nos deixando em dúvida se a matriarca é simplesmente uma mãe
superprotetora ou uma desequilibrada total. Já a Amma de Eliza Scanlen vai aos
poucos desnudando para Camille seu verniz de boa menina interiorana revelando um
lado mais sombrio e malicioso.
Em Garota Exemplar o texto de Gillian Flynn já mostrava uma visão
doentia sobre pais e filhos no modo como deixava implícito que a conduta
obsessiva e manipuladora de Amy era uma reprodução do que os pais faziam com
ela e a puniam por não corresponder às suas expectativas. Aqui, fica ainda mais
claro que não há como sair incólume à convivência com os pais, resultando na
destruição física, mental (no caso de Camille) ou na reprodução das mesmas
condutas questionáveis (como acontece com Amma). Nesse sentido, o cerne de Objetos Cortantes é uma sombria disputa
edipiana.
Além das relações parentais, a
série também comenta sobre o conservadorismo interiorano dos Estados Unidos,
especialmente em relação ao lugar da mulher naquela sociedade. De início as
antigas colegas de escola de Camille parecem tratá-la com menosprezo por ela
ter ido embora da cidade e não ter formado uma família, mas à medida que a
protagonista tenta se aproximar delas, como fica claro no episódio em que Camille
vai a uma reunião na casa de uma das colegas, aquelas mulheres se sentem
solitárias, frustradas e infelizes em suas vidas como típicas donas de casa.
A estrutura machista daquela
sociedade fica terrivelmente evidente quando descobrimos que o principal
feriado e heroína da cidade é uma mulher que teve a “coragem” de se manter
calada enquanto era estuprada. Ou seja, é uma cidade que literalmente celebra o
silenciamento feminino diante da violência do homem.
Como tudo é muito centrado na
jornada emocional de Camille, fica evidente que o responsável pelos crimes será
alguém da sua casa e assim acaba sendo bem óbvio deduzir a identidade do
criminoso. Assim como acontecia em Garota
Exemplar, Objetos Cortantes deixa
muitos elementos em aberto no que se refere a como a protagonista vai lidar com
sua descoberta e a nova dinâmica que se estabelece. Famílias, para Gillian
Flynn, parecem ser uma interminável fonte de tormento.
Objetos Cortantes constrói um cuidadoso e sombrio estudo sobre
relações parentais, tecendo um intrigante mistério elevado pela riqueza ambígua
das personagens principais.
Nota: 8/10
Trailer
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