quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Crítica – Objetos Cortantes



Análise Crítica – Objetos Cortantes

Review – Objetos Cortantes
Em Garota Exemplar (2014), filme que foi um dos objetos da minha tese de doutorado, o texto da romancista Gillian Flynn mostrava uma visão bastante sombria sobre relações matrimoniais. Esta minissérie Objetos Cortantes adapta outro romance de Flynn e mais uma vez tece uma trama soturna sobre a vida em família, dessa vez focando em relações parentais.

Camille Preaker (Amy Adams) é uma repórter da cidade de Saint Louis que é mandada de volta para Wind Gap, a cidadezinha do Missouri na qual cresceu, para cobrir o assassinato brutal de duas adolescentes. Em Wind Gap ela reencontra a família com quem não fala há anos: sua controladora mãe, Adora (Patricia Clarkson), a meia-irmã Amma (Eliza Scanlen) e o padrasto Alan (Henry Czerny). O reencontro abre feridas antigas e o trauma de Camille em ter perdido a irmã, Marion, ainda jovem. Assim, Camille precisa lidar tanto com as dificuldades da investigação quanto com seus problemas emocionais mal resolvidos.

A trama é claramente mais focada na jornada emocional de Camille do que na investigação em si, o que pode decepcionar que está em busca de uma trama policial mais tradicional, mas a escolha resulta em envolvente, e por vezes aterrador, estudo de personagem conforme passeamos pela mente fraturada da protagonista. O diretor Jean Marc Valée, responsável por Big Little Lies, constrói a trama com uma montagem abrupta, que constantemente corta para flashbacks de Camille, nos mergulhando no fluxo de consciência dela e evidenciando como todos os traumas passados ainda são totalmente presentes na cabeça da personagem. Essas fusões de passado, presente e viagens pela mente de Camille conferem um ar de delírio febril às imagens similar ao que acontecia em True Detective, flertando com o terror em muitos momentos.

As marcas da perda da irmã e da relação complicada com a mãe opressora literalmente são visíveis no corpo da protagonista, visto que seu hábito de se cortar é uma maneira de externar sentimentos que ela não sabe como lidar ou falar, bem como uma espécie de penitência por uma culpa que não consegue expurgar. Amy Adams compõe a personagem como alguém levada ao limite, já que os crimes e o reencontro com a família constantemente a fazem reviver seus traumas e apesar de ser uma sagaz repórter, Adams nos deixa perceber que Camille está muito próxima de ser levada ao limite pela situação.

A ideia de que ela se machuca como uma forma de penitência ou autopunição não se limita aos danos físicos que causa a si mesma, mas também pela maneira com a qual (talvez inconscientemente) sabota a relação que constrói com o policial Richard (Chris Messina, que já tinha sido o interesse amoroso de Adams em Julie & Julia).

Patricia Clarkson, por sua vez, faz de Adora alguém de estados emocionais extremos, variando da afabilidade à histeria, nos deixando em dúvida se a matriarca é simplesmente uma mãe superprotetora ou uma desequilibrada total. Já a Amma de Eliza Scanlen vai aos poucos desnudando para Camille seu verniz de boa menina interiorana revelando um lado mais sombrio e malicioso.

Em Garota Exemplar o texto de Gillian Flynn já mostrava uma visão doentia sobre pais e filhos no modo como deixava implícito que a conduta obsessiva e manipuladora de Amy era uma reprodução do que os pais faziam com ela e a puniam por não corresponder às suas expectativas. Aqui, fica ainda mais claro que não há como sair incólume à convivência com os pais, resultando na destruição física, mental (no caso de Camille) ou na reprodução das mesmas condutas questionáveis (como acontece com Amma). Nesse sentido, o cerne de Objetos Cortantes é uma sombria disputa edipiana.

Além das relações parentais, a série também comenta sobre o conservadorismo interiorano dos Estados Unidos, especialmente em relação ao lugar da mulher naquela sociedade. De início as antigas colegas de escola de Camille parecem tratá-la com menosprezo por ela ter ido embora da cidade e não ter formado uma família, mas à medida que a protagonista tenta se aproximar delas, como fica claro no episódio em que Camille vai a uma reunião na casa de uma das colegas, aquelas mulheres se sentem solitárias, frustradas e infelizes em suas vidas como típicas donas de casa.

A estrutura machista daquela sociedade fica terrivelmente evidente quando descobrimos que o principal feriado e heroína da cidade é uma mulher que teve a “coragem” de se manter calada enquanto era estuprada. Ou seja, é uma cidade que literalmente celebra o silenciamento feminino diante da violência do homem.

Como tudo é muito centrado na jornada emocional de Camille, fica evidente que o responsável pelos crimes será alguém da sua casa e assim acaba sendo bem óbvio deduzir a identidade do criminoso. Assim como acontecia em Garota Exemplar, Objetos Cortantes deixa muitos elementos em aberto no que se refere a como a protagonista vai lidar com sua descoberta e a nova dinâmica que se estabelece. Famílias, para Gillian Flynn, parecem ser uma interminável fonte de tormento.

Objetos Cortantes constrói um cuidadoso e sombrio estudo sobre relações parentais, tecendo um intrigante mistério elevado pela riqueza ambígua das personagens principais.


Nota: 8/10


Trailer

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