Mostrando o cotidiano da vida em
Oakland, periferia de São Francisco, e abordando questões de desigualdade
racial, Ponto Cego soa quase como uma
versão da costa oeste dos Estados Unidos do seminal Faça a Coisa Certa (1989) de Spike Lee, entregando um conjunto
similar de personagens singulares e contundentes observações sobre as dinâmicas
sociais e raciais do seu país.
A narrativa é centrada em Collin (Daveed
Diggs), um ex-presidiário que está a três dias do fim de sua liberdade condicional
e tenta reconstruir a vida depois de seu tempo na prisão. Ele trabalha em uma
empresa de mudanças ao lado do melhor amigo, Miles (Rafael Casal), que tem um
temperamento explosivo. Um dia, Collin testemunha um policial branco atirando
em um homem negro desarmado e a visão irá assombrar o personagem pelos próximos
dias.
Com cores fortes e cenas que
parecem um sonho febril, a direção de Carlos Lopez Estrada é eficiente em nos
deixar imersos nos sentimentos de Collin, que se sente aprisionado mesmo estando
em liberdade, incapaz de se livrar da marca de ser um ex-presidiário. Há nele
um misto de insegurança e revolta pela situação em que se encontra, com tudo
sendo potencializado pela execução testemunhada por ele. Cada vez que vemos uma
viatura ou ouvimos uma sirene sentimos uma apreensão genuína por Collin,
temendo que ele se vítima de brutalidade policial mesmo sem ter feito nada de
criminoso.
Miles, por sua vez, vai aos
poucos demonstrando que sua postura extremamente agressiva ou sua tentativa de
emular a cultura negra apesar de ser branco é uma espécie de mecanismo defesa
para compensar seu sentimento de deslocamento. Tendo vivido em Oakland a vida
toda, ele não se identifica os hipsters brancos
ricos que transitam pela vizinhança, mas também sabe que não será igual à
população negra do local e que sua pele branca o livra das dificuldades e
preconceitos enfrentados por Collin.
O texto escrito por Daveed Diggs
e Rafael Casal evita maniqueísmos fáceis, criando uma dinâmica complexa na
relação entre os dois protagonistas entre si e com o mundo. Mesmo evidenciando
o racismo estrutural que encarcera (literal e metaforicamente) ou mata a
população negra, o material não exime Collin de ter sido responsável pela
própria prisão ao se envolver em uma briga estúpida. Do mesmo modo, também não
exime Miles por conta de sua conduta imatura e do risco que ele expõe a esposa
e o filho ao levar uma arma para casa.
Mesmo tratando de temas muito
sérios, existem também muitos momentos de comédia envolvendo os encontros de
Collin e Miles com algumas personalidades excêntricas da vizinhança, como uma
dona de salão de beleza ou um motorista de Uber que dirige um carro tunado, que
ajudam a dar vida e personalidade ao universo habitado pela dupla principal,
construindo um olhar cheio de afeto sobre aquele local (Diggs e Casal moraram
em Oakland, afinal de contas) apesar dos problemas que experimentam
cotidianamente. Poderia resultar em algo tonalmente inconsistente, mas o humor
é bem dosado o bastante para não tirar a gravidade dos temas mais sérios.
Além do racismo, a trama também
trata da questão da gentrificação e como o aumento de pessoas brancas e
endinheiradas na vizinhança só piora as coisas para a população daquela
periferia, aumentando os preços ou fazendo a presença policial ser ainda mais
opressiva. São quase duas faces da mesma moeda, já que os dois fenômenos
(racismo e gentrificação) operam para jogar a população periférica sempre para
as margens.
Ocasionalmente o texto se entrega
a alguns excessos de didatismo para fazer seus temas transparecerem ou algumas
coincidências bastante convenientes, mas isso acaba sendo um problema menor em
virtude da força emocional da performance de Daveed Diggs. Há uma verdade
enorme no trabalho dele que suplanta os problemas estruturais do texto. É
difícil não se deixar envolver por ele em cenas como a que Collin confronta o
policial que ele vê no começo do filme e coloca para fora, em forma de rap, toda sua frustração, raiva, dúvida
e insegurança. O roteiro é esperto o bastante para evitar soluções simplórias,
reconhecendo que o racismo e as desigualdades não serão resolvidas de uma hora
para outra e tudo que resta aos seus personagens é continuar tentando melhorar
suas vidas.
Com um cuidadoso equilíbrio entre
drama e comédia, Ponto Cego pinta um
contundente retrato das relações de classe e de raça na periferia dos Estados
Unidos, elevado pelo potente trabalho de Daveed Diggs.
Nota: 8/10
Trailer
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