segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Crítica – Ponto Cego


Análise Crítica – Ponto Cego


Review – Ponto Cego
Mostrando o cotidiano da vida em Oakland, periferia de São Francisco, e abordando questões de desigualdade racial, Ponto Cego soa quase como uma versão da costa oeste dos Estados Unidos do seminal Faça a Coisa Certa (1989) de Spike Lee, entregando um conjunto similar de personagens singulares e contundentes observações sobre as dinâmicas sociais e raciais do seu país.

A narrativa é centrada em Collin (Daveed Diggs), um ex-presidiário que está a três dias do fim de sua liberdade condicional e tenta reconstruir a vida depois de seu tempo na prisão. Ele trabalha em uma empresa de mudanças ao lado do melhor amigo, Miles (Rafael Casal), que tem um temperamento explosivo. Um dia, Collin testemunha um policial branco atirando em um homem negro desarmado e a visão irá assombrar o personagem pelos próximos dias.

Com cores fortes e cenas que parecem um sonho febril, a direção de Carlos Lopez Estrada é eficiente em nos deixar imersos nos sentimentos de Collin, que se sente aprisionado mesmo estando em liberdade, incapaz de se livrar da marca de ser um ex-presidiário. Há nele um misto de insegurança e revolta pela situação em que se encontra, com tudo sendo potencializado pela execução testemunhada por ele. Cada vez que vemos uma viatura ou ouvimos uma sirene sentimos uma apreensão genuína por Collin, temendo que ele se vítima de brutalidade policial mesmo sem ter feito nada de criminoso.

Miles, por sua vez, vai aos poucos demonstrando que sua postura extremamente agressiva ou sua tentativa de emular a cultura negra apesar de ser branco é uma espécie de mecanismo defesa para compensar seu sentimento de deslocamento. Tendo vivido em Oakland a vida toda, ele não se identifica os hipsters brancos ricos que transitam pela vizinhança, mas também sabe que não será igual à população negra do local e que sua pele branca o livra das dificuldades e preconceitos enfrentados por Collin.

O texto escrito por Daveed Diggs e Rafael Casal evita maniqueísmos fáceis, criando uma dinâmica complexa na relação entre os dois protagonistas entre si e com o mundo. Mesmo evidenciando o racismo estrutural que encarcera (literal e metaforicamente) ou mata a população negra, o material não exime Collin de ter sido responsável pela própria prisão ao se envolver em uma briga estúpida. Do mesmo modo, também não exime Miles por conta de sua conduta imatura e do risco que ele expõe a esposa e o filho ao levar uma arma para casa.

Mesmo tratando de temas muito sérios, existem também muitos momentos de comédia envolvendo os encontros de Collin e Miles com algumas personalidades excêntricas da vizinhança, como uma dona de salão de beleza ou um motorista de Uber que dirige um carro tunado, que ajudam a dar vida e personalidade ao universo habitado pela dupla principal, construindo um olhar cheio de afeto sobre aquele local (Diggs e Casal moraram em Oakland, afinal de contas) apesar dos problemas que experimentam cotidianamente. Poderia resultar em algo tonalmente inconsistente, mas o humor é bem dosado o bastante para não tirar a gravidade dos temas mais sérios.

Além do racismo, a trama também trata da questão da gentrificação e como o aumento de pessoas brancas e endinheiradas na vizinhança só piora as coisas para a população daquela periferia, aumentando os preços ou fazendo a presença policial ser ainda mais opressiva. São quase duas faces da mesma moeda, já que os dois fenômenos (racismo e gentrificação) operam para jogar a população periférica sempre para as margens.

Ocasionalmente o texto se entrega a alguns excessos de didatismo para fazer seus temas transparecerem ou algumas coincidências bastante convenientes, mas isso acaba sendo um problema menor em virtude da força emocional da performance de Daveed Diggs. Há uma verdade enorme no trabalho dele que suplanta os problemas estruturais do texto. É difícil não se deixar envolver por ele em cenas como a que Collin confronta o policial que ele vê no começo do filme e coloca para fora, em forma de rap, toda sua frustração, raiva, dúvida e insegurança. O roteiro é esperto o bastante para evitar soluções simplórias, reconhecendo que o racismo e as desigualdades não serão resolvidas de uma hora para outra e tudo que resta aos seus personagens é continuar tentando melhorar suas vidas.

Com um cuidadoso equilíbrio entre drama e comédia, Ponto Cego pinta um contundente retrato das relações de classe e de raça na periferia dos Estados Unidos, elevado pelo potente trabalho de Daveed Diggs.


Nota: 8/10


Trailer

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