A diretora Flávia Castro já tinha
abordado a questão dos desaparecidos políticos da ditadura militar brasileira
em seu documentário Diário de uma Busca
(2010) no qual ela tentava desvendar a morte do pai, um dos muitos
desaparecidos políticos do período. Ela volta a esse período, agora com um
filme de ficção, neste Deslembro.
Joana (Jeanne Boudier) é uma
adolescente brasileira que morou boa parte de sua vida na França depois que sua
mãe fugiu do Brasil por conta da ditadura militar e seu pai foi morto pelo
mesmo regime. Por conta da lei de anistia, sua família agora pode retornar ao
país, mas Joana não está contente em retornar a um país que, para ela, é
sinônimo de morte e tortura. No Brasil, memórias perdidas de infância vão aos
poucos retornando a Joana e ela vai tentando entender o que aconteceu com o
pai.
O senso de deslocamento de Joana
em relação ao Brasil é denotado por escolhas bastante deliberadas de quando ela
fala em português ou em francês. Sempre que a personagem se sente desconfortável
ou incompreendida, como na cena em que ela pergunta à mãe o que significa ser
desaparecido político, ela recorre ao francês quase como um mecanismo inconsciente
para demonstrar o quanto ela se sente estrangeira aqui. Esse sentimento de
inadequação também é percebido em outras falas da personagem, como a breve
pausa que ela dá antes de falar “vó” em uma conversa com a avó ao telefone,
como se a ideia de ter uma avó, uma mulher que ela mal conhece, ainda não lhe
soasse natural.
Parte desse estranhamento de
Joana com o país vem justamente da sua falta de memória, já que ela foi embora
ainda muito pequena. A importância da memória e conhecer o passado é algo que perpassa
praticamente todas as tramas. O fato de Joana e sua família não saberem o que
aconteceu com o pai dela, as impedem de seguir adiante, mantendo-as presas em
um passado sem vestígios, sem documentos, sem memória de existência. Sem essa
memória as personagens tem dificuldade em seguir adiante e essa necessidade de
memória para poder vislumbrar o futuro acaba (intencionalmente ou não) trazendo
um paralelo com a atual situação do país, no qual a falta da plena recuperação
da memória da ditadura abriu espaço para um perigoso negacionismo da mesma.
Além dessas reflexões amargas
sobre um passado que lamentavelmente se mostra cada vez mais presente, a
narrativa também abre espaço para bastante doçura conforme exibe as tentativas
de Joana de se integrar com um lugar no qual ela ainda se sente uma
estrangeira. Isso acontece principalmente nas cenas em que a protagonista
divide com a avó, interpretada por Eliane Giardini, que traz uma boa medida de
calor humano e senso de humor para a matriarca. Ocasionalmente o texto se
entrega a um excesso de didatismo conforme explica o contexto do período, sendo
que o filme funciona melhor quando se detém na vida e nos problemas de Joana e
sua família como um microcosmo dos impactos da ditadura sobre a vida das
pessoas ao invés de querer ser um relato histórico mais amplo.
Assim, Deslembro é um agridoce tratado sobre a importância da memória e
sua relação com a formação da identidade.
Nota: 8/10
Esse texto faz parte de nossa cobertura do XIV Panorama Internacional Coisa de Cinema
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