Estrelado pelo ex-ator mirim Kirk Cameron, famoso em sua
juventude por conta da série Tudo em
Família e que hoje se tornou uma espécie de televangelista, este Salvando o Natal promete em seu pôster
“trazer Cristo de volta ao Natal”. Imaginei que com isso o filme quisesse
criticar o consumismo das festas natalinas e resgatar a essência da fé cristã
que se perdeu nas comemorações da festa. Eu estava errado, eu estava muito, muito
errado. O que ele apresenta é uma visão delirante e equivocada sobre os
significados da festa, mas nem é só isso que o torna abominável.
O filme abre com Kirk sentado diante de uma poltrona falando
sobre as festas natalinas e logo após uma breve fala sobre o Natal ser uma
época de caridade e oração ele mostra o real intento do filme, entregando um
longo discurso sobre como as comemorações natalinas estariam “sob ataque” ou
sendo ameaçadas por pessoas que não gostam ou não entendem o significado das
festas.
Ora, os Estados Unidos são uma nação formada por puritanos
cristãos, as notas de dólar trazem a mensagem “in God we trust” (em Deus confiamos) escrita nelas, o juramento à
bandeira menciona o fato do país ser “uma nação sob Deus, indivisível”, e assim
é difícil comprar a ideia de que o cristianismo é de algum modo um grupo
perseguido. Cristãos são um grupo social hegemônico, que determina padrões e
normas, tanto lá quanto aqui no Brasil. Desta forma, tentar argumentar sobre
perseguição é uma dissonância cognitiva com a realidade ou pura desonestidade
intelectual, mesmo se considerarmos que está havendo uma perda de hegemonia, já
que isso seria muito diferente de ser perseguido ou intimidado.
A “trama”, se é que podemos dizer que há uma, gira em torno
de Kirk (Kirk Cameron) tentar animar o cunhado Christian (Darren Doane, que
também dirigiu essa atrocidade), que acha que o Natal não é mais o que era e
perdeu sua essência. O que segue é uma longa série de conversas nas quais Kirk
tenta ensinar Christian (cujo nome em inglês também significa “cristão” sendo
uma metáfora pouco sutil para o fato de Cameron estar ensinando cristãos) sobre
onde está o cristianismo no Natal. É menos um filme narrativo e mais uma
mistura bizarra entre Telecurso 2000 e escola dominical se ambos fossem
produzidos por pessoas que pegassem todo o conhecimento histórico, filosófico e
teológico do cristianismo e usassem como papel higiênico.
O diálogo entre Christian e Kirk começa com Christian
falando que não consegue aproveitar o Natal, já que se tornou uma festa
consumista que ignora a figura de Jesus Cristo em favor de imagens como árvores
e Papai Noel, que as pessoas pensam mais em ganhar presentes do que em praticar
caridade ou fazer o bem para outros. É uma declaração razoavelmente sensata, já
que o lado espiritual e caridoso é muitas vezes deixado de lado nas festas de
fim de ano, mas que, segundo Kirk, está completamente errada. Ele então parte
para longas explicações sobre a simbologia cristã em um tom excessivamente
solene e professoral que, como mencionei antes, ignora toda a pesquisa e
conhecimento construídos solidamente sobre o tema.
A narração delirante de Cameron ignora que muitos elementos
das festas de Natal, como o fato de se passar em dezembro ou o uso de árvores,
terem sido incorporados pelo cristianismo a partir de antigas festas pagãs que
celebravam a mudança das estações para facilitar que esses povos pagãos fossem
evangelizados. Ao invés disso, ele tenta justificar a presença de elementos não
bíblicos a partir de associações vagas com passagens do evangelho. Ele vai
dizer que árvores de Natal tem tudo a ver com o cristianismo porque simbolizam
a árvore da sabedoria do Jardim do Éden, aquela da qual Eva comeu o fruto
levando à expulsão dela e Adão do paraíso.
O que o Éden, que está lá no livro da Gênese tem a ver com o
dia do nascimento de Jesus? Bem, segundo Cameron como Jesus morreu pelos nossos
pecados (o argumento ignora que o Natal celebra o nascimento e não a morte de
Cristo) pregado em uma cruz de madeira e árvores são feitas de madeira. Então,
é como se Jesus, ao morrer crucificado, estivesse colocando o fruto proibido de
volta na árvore e assim nos limpando dos pecados, ignorando também que a bíblia
e a teologia cristã associam a morte de cristo com o sacrifício de cordeiros
que se fazia no Velho Testamento e não com a árvore de Gênese. Ele também diz
que os presentes ao pé da árvore simbolizam os prédios de Belém enquanto que as
luzes da árvore são as estrelas do céu noturno na noite que Jesus nasceu.
Perceberam como todas essas associações são vagas e frouxas?
É possível dizer que praticamente qualquer coisa tem fundamento bíblico a
partir de paralelos que não tem qualquer relação de causa e consequência um com
o outro. Eu posso dizer que churrasco é um costume cristão, pois queimar carne no fogo remete ao momento em que Deus fulminou os pecadores de Sodoma e Gomorra e
o ato de passar sal grosso na carne está relacionado ao fato da mulher de Ló
ter se tonado uma estátua de sal ao olhar para trás enquanto a família fugia
das cidades sendo fulminadas. Assim, é bem simples criar analogias vazias de
qualquer fundamento teológico ou doutrinário. Se Salvando o Natal durasse mais do que seus poucos, mas torturantes,
oitenta minutos, tenho certeza que Cameron acharia uma maneira de conectar o
Grinch, a rena Rudolf e até o Mr. Hankey de South
Park aos escritos sagrados cristãos.
Cameron também tenta explicar o porquê da figura do Papai
Noel ser cristã a partir da história de São Nicolau, que teria sido a
inspiração da criação do bom velhinho natalino. Imaginei que este fosse o
momento em que Cameron fosse finalmente falar da questão da caridade, de
espalhar a boa vontade e se doar para outros, mas não, não é essa a exegese que
o ator/evangelizador faz da história de Nicolau. Para ele, o importante da
história de Nicolau não é sua a ideia de espalhar a caridade, de distribuir
mantimentos aos necessitados, mas o fato dele ter esbofeteado um sacerdote
herege.
Através de uma reconstituição tosca de época, o filme nos
mostra um Nicolau barbudo e marombado que parece um cruzamento entre mendigo e
viking enfiando a porrada em um dito herege com direito a uma taverneira fazendo
piadinha no final. Para além da tosquice do cenário, figurino e atuações (o
ator que interpreta Nicolau o faz parecer um serial killer sinistro), o mais desconcertante é o filme considerar
que o que há de mais cristão na história de São Nicolau é o fato dele usar
violência para calar aqueles que discordavam dele.
É então que Cameron arremata tudo em seu argumento
definitivo: não se pode criticar o materialismo das festas natalinas porque o
Natal diz respeito ao nascimento do filho de Deus, ao fato de Deus ter
manifestado seu filho no mundo material, então uma festa sobre a materialização
do divino precisa sim (na ótica dele) ser focada em coisas materiais. Assim,
Cameron diz que não só não há nada errado em ostentar tudo que você adquiriu ao
longo do ano como é seu dever como cristão fazer isso e chamar amigos para se
banquetear, usando sua melhor prataria, o maior presunto ou a mais rica
manteiga (é sério, isso é um diálogo do filme). Mas e a caridade ou o
compartilhamento de bens materiais com os outros? Bem isso fica de fora do
argumento do protagonista. Ele foca apenas no ato de dar presentes, comida e
tudo que há de melhor para a própria família, em uma demonstração de
materialismo egoísta que nada tem a ver com o cristianismo.
Sim, Cameron alerta que as pessoas não devem estourar os
cartões de crédito ou tentar comprar o afeto de outros com presentes materiais,
mas em nenhum momento de seu discurso sobre materialismo ele fala em
compartilhar o que temos com os menos afortunados. Para ele o Natal é uma época
de ostentação pessoal, refletindo o ideal da tacanha “teologia da prosperidade”
que defende que as bênçãos financeiras são os principais desígnios de Deus para
os cristãos, que a riqueza material é a recompensa pela fé em Deus.
E se uma família não tem dinheiro sequer para comprar
comida? Bem, nada disso está contemplado aqui. Talvez porque Cameron e todo o
seu ideal de teologia da prosperidade consideram que todo cristão é bem
sucedido e quem não é provavelmente não tem fé o suficiente ou tem outras
crenças e nesse caso você é culpado pelo próprio fracasso. Sério, não consigo
lembrar de nenhum outro filme natalino, mesmo aqueles sem um viés propriamente
religioso, que endossou tão desavergonhadamente o materialismo, a acumulação
egoísta e até mesmo a gula (que, lembremos, é um pecado capital).
Se tudo isso lhe soa terrivelmente não cristão, bem, é
porque não é mesmo e não sou eu que estou dizendo, mas o próprio evangelho. No evangelho de Mateus, capítulo 6, versículo 24, Jesus diz: "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o
outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus
e ao Dinheiro". No livro de Lucas, capítulo 12, versículo 33, Jesus
ensina: “Vendei o que tendes, e dai
esmolas. Fazei para vós bolsas que não se envelheçam; tesouro nos céus que
nunca acabe, aonde não chega ladrão e a traça não rói”. Ainda em Lucas,
capítulo 18, versículos 24 e 25, é dito: “E,
vendo Jesus que ele ficara muito triste, disse: Quão dificilmente entrarão no
reino de Deus os que têm riquezas! Porque é mais fácil entrar um camelo pelo
fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”. Eu poderia
continuar citando trecho atrás de trecho bíblico nos quais Jesus condena a
acumulação material egoísta e alerta para os perigos de se deixar assoberbar
pelar riqueza material, mas acho que já deu para entender.
Ao fim dessa longa palestra, Christian fica convencido do
ponto de vista de Kirk e imediatamente passa a adorar o Natal, entrando em casa
correndo e se atirando aos pés da árvore de Natal com um olhar exageradamente
encantando, sugerindo que ele talvez tivesse algumas anfetaminas guardadas no
carro e as tomou antes de voltar para casa. Imediatamente Christian reúne todos
os convidados iniciando um longo número de dança extremamente coreografado, o
que é bem estranho. Afinal, Christian ensinou e ensaiou previamente a dança
para o caso do espírito natalino dele retornar? Não há motivo nenhum para isso
estar no filme, exceto para alongar a duração.
Aliás, todas as cenas que não consistem de Kirk Cameron
sentado palestrando para Christian e para público não tem nada a acrescentar ao
restante de filme. Uma delas é uma longa conversa entre Christian e Diondre
(David Shannon), um dos convidados da festa, na qual Diondre se entrega a uma
longa reclamação sobre a empresa na qual trabalha ter acabado com a
“sexta-feira casual” e ele não ter mais como vestir suas “camisas malucas no
trabalho”. Imagino que a cena foi pensada como um alívio cômico, mas os
diálogos não possuem qualquer graça e se alongam mais do que deveriam, se
repetindo um monte antes de acabar e dando a impressão de algo feito de
improviso.
Outra cena descartável é a que Diondre conversa com outro
personagem e eles se envolvem em uma longuíssima discussão sobre teorias da
conspiração bem doidas sobre o cristianismo que eu sinceramente não sei se o
filme quer que levemos a sério ou demos risada. Não só tudo isso é inútil para
o filme, como é bem estranho que a maior parte da cena envolva os dois
personagens falando com canecas cobrindo o rosto. Como as bocas mal se
movimentam e não sincronizam com as falas, imagino que a decisão de cobrir o
rosto dos atores tenha sido por tudo ter sido filmado de improviso, sem
diálogos estruturados para poderem adicionar as falas depois durante a
pós-produção. Tudo soa como algo feito sem esforço, filmado de qualquer maneira
sem preocupação com ritmo narrativo, montagem, construção de planos,
personagens carismáticos ou mesmo com a construção de um debate sincero sobre a
natureza do Natal.
Ou seja, Salvando o
Natal não é apenas desprezível em sua retórica religiosa de valorização do
materialismo, como também é um filme (e eu sinto uma leve ânsia de vômito toda
vez que me refiro a isso como filme) realizado sem qualquer cuidado ou esforço
criativo, não passando de uma longa palestra que só existe para satisfazer o
ego de seu astro principal. Suportar esse produto audiovisual até o fim de seus
oitenta minutos foi uma das coisas mais dolorosas de minha vida.
Trailer
Trailer
Um comentário:
Quase morri olhando o trailer
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