quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Lixo Extraordinário – Salvando o Natal


Crítica – Salvando o Natal


Review - Saving Christmas
Estrelado pelo ex-ator mirim Kirk Cameron, famoso em sua juventude por conta da série Tudo em Família e que hoje se tornou uma espécie de televangelista, este Salvando o Natal promete em seu pôster “trazer Cristo de volta ao Natal”. Imaginei que com isso o filme quisesse criticar o consumismo das festas natalinas e resgatar a essência da fé cristã que se perdeu nas comemorações da festa. Eu estava errado, eu estava muito, muito errado. O que ele apresenta é uma visão delirante e equivocada sobre os significados da festa, mas nem é só isso que o torna abominável.

O filme abre com Kirk sentado diante de uma poltrona falando sobre as festas natalinas e logo após uma breve fala sobre o Natal ser uma época de caridade e oração ele mostra o real intento do filme, entregando um longo discurso sobre como as comemorações natalinas estariam “sob ataque” ou sendo ameaçadas por pessoas que não gostam ou não entendem o significado das festas.

Ora, os Estados Unidos são uma nação formada por puritanos cristãos, as notas de dólar trazem a mensagem “in God we trust” (em Deus confiamos) escrita nelas, o juramento à bandeira menciona o fato do país ser “uma nação sob Deus, indivisível”, e assim é difícil comprar a ideia de que o cristianismo é de algum modo um grupo perseguido. Cristãos são um grupo social hegemônico, que determina padrões e normas, tanto lá quanto aqui no Brasil. Desta forma, tentar argumentar sobre perseguição é uma dissonância cognitiva com a realidade ou pura desonestidade intelectual, mesmo se considerarmos que está havendo uma perda de hegemonia, já que isso seria muito diferente de ser perseguido ou intimidado.

A “trama”, se é que podemos dizer que há uma, gira em torno de Kirk (Kirk Cameron) tentar animar o cunhado Christian (Darren Doane, que também dirigiu essa atrocidade), que acha que o Natal não é mais o que era e perdeu sua essência. O que segue é uma longa série de conversas nas quais Kirk tenta ensinar Christian (cujo nome em inglês também significa “cristão” sendo uma metáfora pouco sutil para o fato de Cameron estar ensinando cristãos) sobre onde está o cristianismo no Natal. É menos um filme narrativo e mais uma mistura bizarra entre Telecurso 2000 e escola dominical se ambos fossem produzidos por pessoas que pegassem todo o conhecimento histórico, filosófico e teológico do cristianismo e usassem como papel higiênico.

O diálogo entre Christian e Kirk começa com Christian falando que não consegue aproveitar o Natal, já que se tornou uma festa consumista que ignora a figura de Jesus Cristo em favor de imagens como árvores e Papai Noel, que as pessoas pensam mais em ganhar presentes do que em praticar caridade ou fazer o bem para outros. É uma declaração razoavelmente sensata, já que o lado espiritual e caridoso é muitas vezes deixado de lado nas festas de fim de ano, mas que, segundo Kirk, está completamente errada. Ele então parte para longas explicações sobre a simbologia cristã em um tom excessivamente solene e professoral que, como mencionei antes, ignora toda a pesquisa e conhecimento construídos solidamente sobre o tema.

A narração delirante de Cameron ignora que muitos elementos das festas de Natal, como o fato de se passar em dezembro ou o uso de árvores, terem sido incorporados pelo cristianismo a partir de antigas festas pagãs que celebravam a mudança das estações para facilitar que esses povos pagãos fossem evangelizados. Ao invés disso, ele tenta justificar a presença de elementos não bíblicos a partir de associações vagas com passagens do evangelho. Ele vai dizer que árvores de Natal tem tudo a ver com o cristianismo porque simbolizam a árvore da sabedoria do Jardim do Éden, aquela da qual Eva comeu o fruto levando à expulsão dela e Adão do paraíso.

O que o Éden, que está lá no livro da Gênese tem a ver com o dia do nascimento de Jesus? Bem, segundo Cameron como Jesus morreu pelos nossos pecados (o argumento ignora que o Natal celebra o nascimento e não a morte de Cristo) pregado em uma cruz de madeira e árvores são feitas de madeira. Então, é como se Jesus, ao morrer crucificado, estivesse colocando o fruto proibido de volta na árvore e assim nos limpando dos pecados, ignorando também que a bíblia e a teologia cristã associam a morte de cristo com o sacrifício de cordeiros que se fazia no Velho Testamento e não com a árvore de Gênese. Ele também diz que os presentes ao pé da árvore simbolizam os prédios de Belém enquanto que as luzes da árvore são as estrelas do céu noturno na noite que Jesus nasceu.

Perceberam como todas essas associações são vagas e frouxas? É possível dizer que praticamente qualquer coisa tem fundamento bíblico a partir de paralelos que não tem qualquer relação de causa e consequência um com o outro. Eu posso dizer que churrasco é um costume cristão, pois queimar carne no fogo remete ao momento em que Deus fulminou os pecadores de Sodoma e Gomorra e o ato de passar sal grosso na carne está relacionado ao fato da mulher de Ló ter se tonado uma estátua de sal ao olhar para trás enquanto a família fugia das cidades sendo fulminadas. Assim, é bem simples criar analogias vazias de qualquer fundamento teológico ou doutrinário. Se Salvando o Natal durasse mais do que seus poucos, mas torturantes, oitenta minutos, tenho certeza que Cameron acharia uma maneira de conectar o Grinch, a rena Rudolf e até o Mr. Hankey de South Park aos escritos sagrados cristãos.

Cameron também tenta explicar o porquê da figura do Papai Noel ser cristã a partir da história de São Nicolau, que teria sido a inspiração da criação do bom velhinho natalino. Imaginei que este fosse o momento em que Cameron fosse finalmente falar da questão da caridade, de espalhar a boa vontade e se doar para outros, mas não, não é essa a exegese que o ator/evangelizador faz da história de Nicolau. Para ele, o importante da história de Nicolau não é sua a ideia de espalhar a caridade, de distribuir mantimentos aos necessitados, mas o fato dele ter esbofeteado um sacerdote herege.

Através de uma reconstituição tosca de época, o filme nos mostra um Nicolau barbudo e marombado que parece um cruzamento entre mendigo e viking enfiando a porrada em um dito herege com direito a uma taverneira fazendo piadinha no final. Para além da tosquice do cenário, figurino e atuações (o ator que interpreta Nicolau o faz parecer um serial killer sinistro), o mais desconcertante é o filme considerar que o que há de mais cristão na história de São Nicolau é o fato dele usar violência para calar aqueles que discordavam dele.

É então que Cameron arremata tudo em seu argumento definitivo: não se pode criticar o materialismo das festas natalinas porque o Natal diz respeito ao nascimento do filho de Deus, ao fato de Deus ter manifestado seu filho no mundo material, então uma festa sobre a materialização do divino precisa sim (na ótica dele) ser focada em coisas materiais. Assim, Cameron diz que não só não há nada errado em ostentar tudo que você adquiriu ao longo do ano como é seu dever como cristão fazer isso e chamar amigos para se banquetear, usando sua melhor prataria, o maior presunto ou a mais rica manteiga (é sério, isso é um diálogo do filme). Mas e a caridade ou o compartilhamento de bens materiais com os outros? Bem isso fica de fora do argumento do protagonista. Ele foca apenas no ato de dar presentes, comida e tudo que há de melhor para a própria família, em uma demonstração de materialismo egoísta que nada tem a ver com o cristianismo.

Sim, Cameron alerta que as pessoas não devem estourar os cartões de crédito ou tentar comprar o afeto de outros com presentes materiais, mas em nenhum momento de seu discurso sobre materialismo ele fala em compartilhar o que temos com os menos afortunados. Para ele o Natal é uma época de ostentação pessoal, refletindo o ideal da tacanha “teologia da prosperidade” que defende que as bênçãos financeiras são os principais desígnios de Deus para os cristãos, que a riqueza material é a recompensa pela fé em Deus.

E se uma família não tem dinheiro sequer para comprar comida? Bem, nada disso está contemplado aqui. Talvez porque Cameron e todo o seu ideal de teologia da prosperidade consideram que todo cristão é bem sucedido e quem não é provavelmente não tem fé o suficiente ou tem outras crenças e nesse caso você é culpado pelo próprio fracasso. Sério, não consigo lembrar de nenhum outro filme natalino, mesmo aqueles sem um viés propriamente religioso, que endossou tão desavergonhadamente o materialismo, a acumulação egoísta e até mesmo a gula (que, lembremos, é um pecado capital).

Se tudo isso lhe soa terrivelmente não cristão, bem, é porque não é mesmo e não sou eu que estou dizendo, mas o próprio evangelho. No evangelho de Mateus, capítulo 6, versículo 24, Jesus diz: "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro". No livro de Lucas, capítulo 12, versículo 33, Jesus ensina: “Vendei o que tendes, e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não se envelheçam; tesouro nos céus que nunca acabe, aonde não chega ladrão e a traça não rói”. Ainda em Lucas, capítulo 18, versículos 24 e 25, é dito: “E, vendo Jesus que ele ficara muito triste, disse: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas! Porque é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”. Eu poderia continuar citando trecho atrás de trecho bíblico nos quais Jesus condena a acumulação material egoísta e alerta para os perigos de se deixar assoberbar pelar riqueza material, mas acho que já deu para entender.

Ao fim dessa longa palestra, Christian fica convencido do ponto de vista de Kirk e imediatamente passa a adorar o Natal, entrando em casa correndo e se atirando aos pés da árvore de Natal com um olhar exageradamente encantando, sugerindo que ele talvez tivesse algumas anfetaminas guardadas no carro e as tomou antes de voltar para casa. Imediatamente Christian reúne todos os convidados iniciando um longo número de dança extremamente coreografado, o que é bem estranho. Afinal, Christian ensinou e ensaiou previamente a dança para o caso do espírito natalino dele retornar? Não há motivo nenhum para isso estar no filme, exceto para alongar a duração.

Aliás, todas as cenas que não consistem de Kirk Cameron sentado palestrando para Christian e para público não tem nada a acrescentar ao restante de filme. Uma delas é uma longa conversa entre Christian e Diondre (David Shannon), um dos convidados da festa, na qual Diondre se entrega a uma longa reclamação sobre a empresa na qual trabalha ter acabado com a “sexta-feira casual” e ele não ter mais como vestir suas “camisas malucas no trabalho”. Imagino que a cena foi pensada como um alívio cômico, mas os diálogos não possuem qualquer graça e se alongam mais do que deveriam, se repetindo um monte antes de acabar e dando a impressão de algo feito de improviso.

Outra cena descartável é a que Diondre conversa com outro personagem e eles se envolvem em uma longuíssima discussão sobre teorias da conspiração bem doidas sobre o cristianismo que eu sinceramente não sei se o filme quer que levemos a sério ou demos risada. Não só tudo isso é inútil para o filme, como é bem estranho que a maior parte da cena envolva os dois personagens falando com canecas cobrindo o rosto. Como as bocas mal se movimentam e não sincronizam com as falas, imagino que a decisão de cobrir o rosto dos atores tenha sido por tudo ter sido filmado de improviso, sem diálogos estruturados para poderem adicionar as falas depois durante a pós-produção. Tudo soa como algo feito sem esforço, filmado de qualquer maneira sem preocupação com ritmo narrativo, montagem, construção de planos, personagens carismáticos ou mesmo com a construção de um debate sincero sobre a natureza do Natal.

Ou seja, Salvando o Natal não é apenas desprezível em sua retórica religiosa de valorização do materialismo, como também é um filme (e eu sinto uma leve ânsia de vômito toda vez que me refiro a isso como filme) realizado sem qualquer cuidado ou esforço criativo, não passando de uma longa palestra que só existe para satisfazer o ego de seu astro principal. Suportar esse produto audiovisual até o fim de seus oitenta minutos foi uma das coisas mais dolorosas de minha vida.

Trailer


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