terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Crítica – Sou Carnaval de São Salvador


Análise Crítica – Sou Carnaval de São Salvador


Review – Sou Carnaval de São Salvador
O carnaval da cidade de Salvador é um fenômeno bastante amplo e poderia ser observado sob diferentes pontos de vista, como manifestação cultural, como negócio, como ferramenta política, pela produção musical. Cada um desses aspectos renderia um documentário inteiro por si só e Sou Carnaval de São Salvador tenta a difícil tarefa de falar de tudo isso de uma vez só.

Narrado pelo ator João Miguel, o documentário demonstra uma ampla pesquisa histórica a respeito desta festa popular, explicando com clareza as origens do tema, as diferentes formas que a festa teve ao longo dos anos e também como as diferentes matrizes culturais influenciaram tanto na estrutura da festa quanto nos ritmos musicais tocados. Inclusive há um segmento considerável no qual músicos e maestros explicam de maneira bem didática a influência de deferentes estruturas rítmicas tornando um conhecimento bastante específico acessível até mesmo para leigos. É possível ver a paixão do filme pelo carnaval soteropolitano e o esforço em transmitir essa paixão para o espectador, com muito desse afeto emergindo da acertada narração de João Miguel.

A metade inicial do filme também mostra a constante presença de preconceitos de classe e de raça na história do carnaval. Usando arquivos e matérias de jornais, o filme mostra como manifestações carnavalescas de populações periféricas e negras eram criminalizadas no começo do século XX, com uma elite branca no controle do que era um carnaval “apropriado” ou “civilizado”. Toda essa primeira metade do filme é um ótimo e consistente relato histórico do carnaval de Salvador, mas o filme dá uma guinada quando chega aos anos 90 no qual o atual modelo do carnaval soteropolitano se consolidou.
                                                                                                     
A partir daí a análise histórica dá lugar a algo que está mais próximo de um informativo de órgão de turismo, elencando os principais blocos, artistas e circuitos carnavalescos com uma verve meio que meramente enciclopédica, apenas exibindo nomes e deixando pouco espaço para refletir sobre os assuntos. Um exemplo é quando o filme começa a falar da existência dos blocos afro e indígenas e a narração nos informa que o número de blocos indígenas diminuiu com o passar dos anos, deixando apenas dois. É uma informação dita de forma passageira, citando nomes, mas sem tentar compreender a razão dessa diminuição.

Em alguns momentos o filme sinaliza algumas questões sobre a segregação social do carnaval envolvendo blocos fechados e camarotes ou a exploração dos trabalhadores que atual na festa, mas também são breves acenos, não detendo muito sobre esses temas como fez o documentário Gente Bonita (2016), de Leon Sampaio. Em alguns deles o filme entrega as opiniões acerca desses temas delicados aos foliões entrevistados, apresentado pontos de vistas múltiplos que nunca são plenamente confrontados porque o texto da narração sempre interfere nessas falas com um tom conciliatório lembrando como há espaço para tudo e todos no carnaval soteropolitano.

Certas questões são sequer exploradas, como a objetificação do corpo feminino e certas construções de estereótipos altamente sexualizados. Em dado momento, o filme para os foliões para perguntar “o que a baiana tem” e praticamente todas as respostas se referem aos corpos femininos ou a extrema sensualidade da população baiana e uma mulher filmada chega a colocar a mão entre seu rosto e câmera quando esta busca seu corpo para mostrar as “qualidades” da mulher baiana. Em nenhum momento o filme para refletir sobre esses estereótipos ou como as letras carnavalescas contribuem para eles, apenas assume a existência deles e sugere até que há algo de positivo ou elogioso nisso (e talvez até haja, mas é mais um tema que o filme passa batido).

Outro problema são as constantes informações repetidas pela narração que eventualmente acabam cansando, já que mais de uma vez ouvimos o texto de que o carnaval se tornou uma grande indústria e os blocos que eram associações de amigos viraram grandes empresas. Mais de uma vez o texto exalta a miscigenação e resistência do povo baiano, assim como a ideia de que há carnaval para todos os gostos e bolsos em Salvador.

Existe uma tentativa de conferir um caráter sensorial colocando a câmera no meio dos foliões que brincam ao lado do trio para fazer o espectador se sentir imerso em meio à festa, mas são momentos breves, que se diluem diante da quantidade de outras coisas que o filme tenta fazer e pela própria curta duração. O filme cita muitas músicas célebres, mas elas são ouvidas muito rapidamente, reduzidas a apenas dois ou três versos, em muitos casos não conseguindo transmitir a força dessas canções, embora eu imagine que essa brevidade talvez se relacione com questões de direitos autorais.

Com uma ampla pesquisa histórica, um claro afeto pelo seu objeto e uma linguagem acessível, Sou Carnaval de São Salvador acaba não realizando plenamente seu potencial ao querer constantemente expandir seu olhar sobre o fenômeno e acaba sendo um filme que tenta abarcar muita coisa, mas que infelizmente não consegue dar conta de todas as suas pretensões.


Nota: 6/10


Trailer

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