O carnaval da cidade de Salvador é um fenômeno bastante
amplo e poderia ser observado sob diferentes pontos de vista, como manifestação
cultural, como negócio, como ferramenta política, pela produção musical. Cada
um desses aspectos renderia um documentário inteiro por si só e Sou Carnaval de São Salvador tenta a
difícil tarefa de falar de tudo isso de uma vez só.
Narrado pelo ator João Miguel, o documentário demonstra uma
ampla pesquisa histórica a respeito desta festa popular, explicando com clareza
as origens do tema, as diferentes formas que a festa teve ao longo dos anos e
também como as diferentes matrizes culturais influenciaram tanto na estrutura
da festa quanto nos ritmos musicais tocados. Inclusive há um segmento
considerável no qual músicos e maestros explicam de maneira bem didática a
influência de deferentes estruturas rítmicas tornando um conhecimento bastante
específico acessível até mesmo para leigos. É possível ver a paixão do filme
pelo carnaval soteropolitano e o esforço em transmitir essa paixão para o
espectador, com muito desse afeto emergindo da acertada narração de João
Miguel.
A metade inicial do filme também mostra a constante presença
de preconceitos de classe e de raça na história do carnaval. Usando arquivos e
matérias de jornais, o filme mostra como manifestações carnavalescas de
populações periféricas e negras eram criminalizadas no começo do século XX, com
uma elite branca no controle do que era um carnaval “apropriado” ou
“civilizado”. Toda essa primeira metade do filme é um ótimo e consistente
relato histórico do carnaval de Salvador, mas o filme dá uma guinada quando
chega aos anos 90 no qual o atual modelo do carnaval soteropolitano se
consolidou.
A partir daí a análise histórica dá lugar a algo que está
mais próximo de um informativo de órgão de turismo, elencando os principais
blocos, artistas e circuitos carnavalescos com uma verve meio que meramente
enciclopédica, apenas exibindo nomes e deixando pouco espaço para refletir
sobre os assuntos. Um exemplo é quando o filme começa a falar da existência dos
blocos afro e indígenas e a narração nos informa que o número de blocos
indígenas diminuiu com o passar dos anos, deixando apenas dois. É uma
informação dita de forma passageira, citando nomes, mas sem tentar compreender
a razão dessa diminuição.
Em alguns momentos o filme sinaliza algumas questões sobre a
segregação social do carnaval envolvendo blocos fechados e camarotes ou a
exploração dos trabalhadores que atual na festa, mas também são breves acenos,
não detendo muito sobre esses temas como fez o documentário Gente
Bonita (2016), de Leon Sampaio. Em alguns deles o filme entrega as
opiniões acerca desses temas delicados aos foliões entrevistados, apresentado
pontos de vistas múltiplos que nunca são plenamente confrontados porque o texto
da narração sempre interfere nessas falas com um tom conciliatório lembrando
como há espaço para tudo e todos no carnaval soteropolitano.
Certas questões são sequer exploradas, como a objetificação
do corpo feminino e certas construções de estereótipos altamente sexualizados.
Em dado momento, o filme para os foliões para perguntar “o que a baiana tem” e
praticamente todas as respostas se referem aos corpos femininos ou a extrema sensualidade
da população baiana e uma mulher filmada chega a colocar a mão entre seu rosto
e câmera quando esta busca seu corpo para mostrar as “qualidades” da mulher
baiana. Em nenhum momento o filme para refletir sobre esses estereótipos ou
como as letras carnavalescas contribuem para eles, apenas assume a existência
deles e sugere até que há algo de positivo ou elogioso nisso (e talvez até
haja, mas é mais um tema que o filme passa batido).
Outro problema são as constantes informações repetidas pela
narração que eventualmente acabam cansando, já que mais de uma vez ouvimos o
texto de que o carnaval se tornou uma grande indústria e os blocos que eram
associações de amigos viraram grandes empresas. Mais de uma vez o texto exalta
a miscigenação e resistência do povo baiano, assim como a ideia de que há
carnaval para todos os gostos e bolsos em Salvador.
Existe uma tentativa de conferir um caráter sensorial
colocando a câmera no meio dos foliões que brincam ao lado do trio para fazer o
espectador se sentir imerso em meio à festa, mas são momentos breves, que se
diluem diante da quantidade de outras coisas que o filme tenta fazer e pela
própria curta duração. O filme cita muitas músicas célebres, mas elas são
ouvidas muito rapidamente, reduzidas a apenas dois ou três versos, em muitos
casos não conseguindo transmitir a força dessas canções, embora eu imagine que
essa brevidade talvez se relacione com questões de direitos autorais.
Com uma ampla pesquisa histórica, um claro afeto pelo seu
objeto e uma linguagem acessível, Sou
Carnaval de São Salvador acaba não realizando plenamente seu potencial ao
querer constantemente expandir seu olhar sobre o fenômeno e acaba sendo um
filme que tenta abarcar muita coisa, mas que infelizmente não consegue dar
conta de todas as suas pretensões.
Nota: 6/10
Trailer
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