Espera-se que uma biografia exiba algum esforço para
entender quem foi o sujeito biografado, o que motivou suas ações ou como ele se
tornou daquele jeito, o que moldou seu caráter, seus anos formativos. Vice, cinebiografia do ex-vice-presidente
Dick Cheney, exibe uma ampla pesquisa sobre os fatos da vida do político e
empresário, mas não parece interessado em entendê-lo.
A narrativa acompanha a trajetória política de Cheney
(Christian Bale), do seu começo trabalhando com Donald Rumsfeld (Steve Carell)
até o momento em que se tornou vice-presidente do governo de George W. Bush
(Sam Rockwell), passando a exercer um poder e influência que nunca se viu de um
vice.
O filme trabalha para mostrar como Cheney foi diretamente
responsável por políticas que afetam os Estados Unidos até hoje, apontando-o
como o responsável pela ascensão de figuras cada vez mais reacionárias como o
criador da Fox News Roger Ailes ou mesmo do atual governo. Ao longo da projeção
vemos como Cheney manipulou e dobrou o sistema político do país para deixá-lo
subjugado a interesses corporativos e não ao bem comum, pensando mais no
próprio enriquecimento e no de seus parceiros comerciais do que no bem da
população.
Tal como fez no ótimo A Grande Aposta (2016), o diretor Adam McKay usa uma abordagem debochada para
contar sua história, se valendo do humor para mostrar o exagero e o absurdo da
situação e usando a montagem para alternar entre os eventos mostrados e algumas
vinhetas que explicam os nebulosos jargões políticos e jurídicos ou
simplesmente fazer piada com tudo.
Diferente de A Grande
Aposta, no qual isso era usado para tornar acessível a impenetrável
linguagem financeira, aqui o humor nem sempre funciona. Talvez pelas ações dos
personagens terem consequências muito mais duras do no filme da crise
financeira, sendo difícil rir quando a montagem nos mostra imagens rápidas de
bombardeios ou pessoas sendo torturadas. Talvez porque McKay usa isso em
situações que nem são tão complexas assim, como quando Cheney explica as
posições dos membros do seu gabinete dentro da administração Bush e a montagem
alterna a fala do político com imagens de um tabuleiro. Nesses momentos parece
que o diretor força demais para tentar parecer “espertinho” às custas de algo
simples, como se subestimasse a inteligência do espectador.
Quando essas estratégias funcionam, no entanto, rendem
alguns dos melhores momentos do filme, como o segmento do restaurante
envolvendo o ator Alfred Molina no qual eles escolhem um “cardápio” de
violações constitucionais ou as duas cenas em Cheney discute com Bush suas
atribuições como vice e a montagem corta para imagens de um peixe sendo
fisgado, denotando a facilidade com a qual Cheney consegue enredar Bush em seu
controle. A cena em que o filme imagina as conversas entre Cheney e a esposa,
Lynne (Amy Adams), como diálogos saídos de uma peça de Shakespeare ajudam a dar
a impressão de que essas pessoas vivem fora da nossa realidade e lidam com as
coisas de maneiras bem distantes da reação de pessoas comuns.
É curioso que um filme de verve tão humorística passa rápido
por alguns dos eventos mais absurdos da trajetória de Cheney, como o incidente
no qual ele acidentalmente (ou “acidentalmente”) atirou em um amigo durante uma
caçada. O acontecimento nunca foi explicado de modo satisfatório e poderia
render algo interessante, mas o filme passa bem rápido sobre esse incidente.
O principal problema, no entanto, reside no olhar de McKay
sobre Cheney e a impressão de que o filme passa que o diretor já decidiu de antemão
que seu biografado é um dos piores seres humanos de todos os tempos. Não estou
aqui defendendo o vice-presidente, ele parece, de fato, ser uma péssima pessoa
e foi responsável por atos desprezíveis como fabricar uma guerra para atender a
interesses corporativos, mas ninguém é uma coisa só o tempo todo e o retrato
que McKay pinta aqui é incomodamente unidimensional. Na verdade, a condução de
McKay parece mais movida por desprezo e raiva do que em entender seu
biografado. Por mais que esses sentimentos sejam compreensíveis em se tratando
de alguém como Dick Cheney e sua manipulação inescrupulosa do sistema político,
esse desinteresse de McKay em seu próprio objeto torna tudo um pouco mais raso
do que deveria.
Christian Bale, no entanto, evita que Cheney se torne uma
caricatura grosseira, fazendo-o como um sujeito extremamente pragmático, alguém
que sabe identificar oportunidades e aproveitá-las como se fosse um predador
que está sempre à espreita. O ator capta com habilidade a cadência peculiar do
discurso de Cheney, que tem algo de quase robótico, e o modo como ele
constantemente fala pelo canto da boca.
O vice-presidente é alguém sem qualquer escrúpulo,
determinado a consolidar seu poder de tal modo que sacrifica qualquer um para
alcançar seus objetivos. Se no início ele desiste de uma campanha presidencial
para não expor a filha lésbica, Mary (Alison Pill), posteriormente ele não tem
qualquer pudor em se aliar a políticos que são contrários a igualdade de
direitos civis para a população LGBT.
Amy Adams faz de Lynne Cheney uma espécie de Lady Macbeth
para o marido, sempre o empurrando em sua jornada de poder, sendo ainda mais
implacável e pragmática que o próprio Dick. A trama credita a ela boa parte do
sucesso do marido, não só pelo apoio constante, mas por ela ser uma melhor
oradora e ter uma presença mais forte e carismática que Dick. Sam Rockwell, por
sua vez, acerta no olhar perdido e nos sorrisos abobalhados de George W. Bush,
um sujeito politicamente inexperiente, inseguro e desejoso de sair da sombra do
legado pai. Um sujeito que sempre parece perdido e com uma expressão beócia na
face conforme sua equipe discute questões políticas complexas. O elo fraco
acaba sendo Steve Carell como Donald Rumsfeld, que pesa a mão na caricatura e
acaba saindo como algo pertencente a um filme diferente.
Apesar de ser irregular em sua tentativa de equilibrar drama
e comédia, Vice acerta ao traçar
paralelos na trajetória de Cheney e a política contemporânea dos EUA,
sustentado pelo trabalho competente de Christian Bale e Amy Adams.
Nota: 6/10
Obs: O filme tem uma cena adicional após os créditos
Trailer
Nenhum comentário:
Postar um comentário