quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Crítica - Vice


Análise Crítica - Vice


Review - Vice
Espera-se que uma biografia exiba algum esforço para entender quem foi o sujeito biografado, o que motivou suas ações ou como ele se tornou daquele jeito, o que moldou seu caráter, seus anos formativos. Vice, cinebiografia do ex-vice-presidente Dick Cheney, exibe uma ampla pesquisa sobre os fatos da vida do político e empresário, mas não parece interessado em entendê-lo.

A narrativa acompanha a trajetória política de Cheney (Christian Bale), do seu começo trabalhando com Donald Rumsfeld (Steve Carell) até o momento em que se tornou vice-presidente do governo de George W. Bush (Sam Rockwell), passando a exercer um poder e influência que nunca se viu de um vice.

O filme trabalha para mostrar como Cheney foi diretamente responsável por políticas que afetam os Estados Unidos até hoje, apontando-o como o responsável pela ascensão de figuras cada vez mais reacionárias como o criador da Fox News Roger Ailes ou mesmo do atual governo. Ao longo da projeção vemos como Cheney manipulou e dobrou o sistema político do país para deixá-lo subjugado a interesses corporativos e não ao bem comum, pensando mais no próprio enriquecimento e no de seus parceiros comerciais do que no bem da população.

Tal como fez no ótimo A Grande Aposta (2016), o diretor Adam McKay usa uma abordagem debochada para contar sua história, se valendo do humor para mostrar o exagero e o absurdo da situação e usando a montagem para alternar entre os eventos mostrados e algumas vinhetas que explicam os nebulosos jargões políticos e jurídicos ou simplesmente fazer piada com tudo.

Diferente de A Grande Aposta, no qual isso era usado para tornar acessível a impenetrável linguagem financeira, aqui o humor nem sempre funciona. Talvez pelas ações dos personagens terem consequências muito mais duras do no filme da crise financeira, sendo difícil rir quando a montagem nos mostra imagens rápidas de bombardeios ou pessoas sendo torturadas. Talvez porque McKay usa isso em situações que nem são tão complexas assim, como quando Cheney explica as posições dos membros do seu gabinete dentro da administração Bush e a montagem alterna a fala do político com imagens de um tabuleiro. Nesses momentos parece que o diretor força demais para tentar parecer “espertinho” às custas de algo simples, como se subestimasse a inteligência do espectador.

Quando essas estratégias funcionam, no entanto, rendem alguns dos melhores momentos do filme, como o segmento do restaurante envolvendo o ator Alfred Molina no qual eles escolhem um “cardápio” de violações constitucionais ou as duas cenas em Cheney discute com Bush suas atribuições como vice e a montagem corta para imagens de um peixe sendo fisgado, denotando a facilidade com a qual Cheney consegue enredar Bush em seu controle. A cena em que o filme imagina as conversas entre Cheney e a esposa, Lynne (Amy Adams), como diálogos saídos de uma peça de Shakespeare ajudam a dar a impressão de que essas pessoas vivem fora da nossa realidade e lidam com as coisas de maneiras bem distantes da reação de pessoas comuns.

É curioso que um filme de verve tão humorística passa rápido por alguns dos eventos mais absurdos da trajetória de Cheney, como o incidente no qual ele acidentalmente (ou “acidentalmente”) atirou em um amigo durante uma caçada. O acontecimento nunca foi explicado de modo satisfatório e poderia render algo interessante, mas o filme passa bem rápido sobre esse incidente.

O principal problema, no entanto, reside no olhar de McKay sobre Cheney e a impressão de que o filme passa que o diretor já decidiu de antemão que seu biografado é um dos piores seres humanos de todos os tempos. Não estou aqui defendendo o vice-presidente, ele parece, de fato, ser uma péssima pessoa e foi responsável por atos desprezíveis como fabricar uma guerra para atender a interesses corporativos, mas ninguém é uma coisa só o tempo todo e o retrato que McKay pinta aqui é incomodamente unidimensional. Na verdade, a condução de McKay parece mais movida por desprezo e raiva do que em entender seu biografado. Por mais que esses sentimentos sejam compreensíveis em se tratando de alguém como Dick Cheney e sua manipulação inescrupulosa do sistema político, esse desinteresse de McKay em seu próprio objeto torna tudo um pouco mais raso do que deveria.

Christian Bale, no entanto, evita que Cheney se torne uma caricatura grosseira, fazendo-o como um sujeito extremamente pragmático, alguém que sabe identificar oportunidades e aproveitá-las como se fosse um predador que está sempre à espreita. O ator capta com habilidade a cadência peculiar do discurso de Cheney, que tem algo de quase robótico, e o modo como ele constantemente fala pelo canto da boca.

O vice-presidente é alguém sem qualquer escrúpulo, determinado a consolidar seu poder de tal modo que sacrifica qualquer um para alcançar seus objetivos. Se no início ele desiste de uma campanha presidencial para não expor a filha lésbica, Mary (Alison Pill), posteriormente ele não tem qualquer pudor em se aliar a políticos que são contrários a igualdade de direitos civis para a população LGBT.

Amy Adams faz de Lynne Cheney uma espécie de Lady Macbeth para o marido, sempre o empurrando em sua jornada de poder, sendo ainda mais implacável e pragmática que o próprio Dick. A trama credita a ela boa parte do sucesso do marido, não só pelo apoio constante, mas por ela ser uma melhor oradora e ter uma presença mais forte e carismática que Dick. Sam Rockwell, por sua vez, acerta no olhar perdido e nos sorrisos abobalhados de George W. Bush, um sujeito politicamente inexperiente, inseguro e desejoso de sair da sombra do legado pai. Um sujeito que sempre parece perdido e com uma expressão beócia na face conforme sua equipe discute questões políticas complexas. O elo fraco acaba sendo Steve Carell como Donald Rumsfeld, que pesa a mão na caricatura e acaba saindo como algo pertencente a um filme diferente.

Apesar de ser irregular em sua tentativa de equilibrar drama e comédia, Vice acerta ao traçar paralelos na trajetória de Cheney e a política contemporânea dos EUA, sustentado pelo trabalho competente de Christian Bale e Amy Adams.


Nota: 6/10

Obs: O filme tem uma cena adicional após os créditos

Trailer

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