É curioso que Magnífica
70, série brasileira produzida pela HBO, tenha começado como uma exploração
histórica sobre a censura no período da ditadura militar e as dificuldades de
viver de arte em um período de repressão e agora, em sua terceira (e
possivelmente última temporada), termine terrivelmente contemporânea ao traçar
paralelos entre o ontem e o hoje.
A narrativa começa algum tempo depois dos eventos da segunda temporada. Vicente (Marcos Winter) se tornou o chefe da censura em São Paulo,
mas tomado pela culpa e afetado pelo surto que teve, começa a ter visões com o
falecido sogro, o general Souto (Paulo César Pereio), que o instiga a criar um
plano ainda mais reacionário e conservador para a censura. Os planos de Vicente
despertam interesse da ala reacionária do governo Geisel, que acham o atual
presidente militar um fraco por estar considerando uma abertura política e
desejam um governo ainda mais repressor. Ao mesmo tempo Dora (Simone Spoladore)
tenta fugir do cativeiro em que se encontra desde a temporada anterior e Isabel
(Maria Luísa Mendonça) pensa em uma maneira de enfrentar o regime.
São personagens quebrados, devastados pela culpa e
arrependimento dos eventos passados, desesperados por alguma chance, mesmo que
mínima, de redenção e se comportando como animais acuados. Há um raro grau de
imprevisibilidade na temporada por conta de suas muitas partes se movendo
simultaneamente e um efeito raro que uma trama consiga me deixar imerso nesse
clima constante de incerteza e suspense, de que qualquer coisa pode acontecer.
O começo da temporada é um pouco lento até que todos estejam reunidos, mas
compensa por mostrar os problemas e contradições de cada um, deixando claros os
riscos quando todos se juntam.
Tal como nas outras temporadas, a série também reflete sobre
a força do cinema e suas possibilidades expressivas. Vemos a ideia do cinema
como arma no episódio em que Manolo (Adriano Garib) mora em uma comunidade hippie e usa a câmera para filmar o
filho de um deputado que ameaça expulsar a comunidade. Não é à toa quando o
filho do deputado aponta uma pistola para a cabeça de Manolo, o produtor
devolve o gesto levantando sua câmera e apontando para o rosto do adversário,
denotando que cada um está lutando com as armas que tem e como a força
expressiva do cinema é superior à força física.
O cinema como veículo de catarse é algo demonstrado no
episódio em que os personagens usam uma série de encenações para fazerem uma
espécie de “terapia relâmpago” em Vicente. É um embate violento entre
encenação, emoções e traumas, mas desse mergulho emocional emerge uma verdade
que Vicente não tem como negar e serve como uma metáfora para as maneiras
através dos quais a arte permite que confrontemos as verdades interiores que
mantemos ocultas. Do mesmo modo, o episódio final mostra como a ficção é capaz
de desnudar verdades sobre as pessoas ou a sociedade, com todo o golpe encenado
por Vicente, Dora e Manolo servindo de armadilha para prender os corruptos
Hélio Pontes (Mario Gomes) e o general Pontes (Gracindo Junior).
Os vilões são reacionários ignorantes e hipócritas que
consideram como “comunista” qualquer um que se oponha a eles, mesmo o próprio
governo militar. Inventam inimigos e ameaças que não existem para fomentar medo,
dizem serem honestos mas praticam diversos atos de corrupção, enfim não muito
diferente de forças políticas que atualmente ocupam o poder. É curioso, pois a
temporada foi feita e lançada antes do resultado das últimas eleições e ainda
assim parece uma resposta direta a ela, sobre a possibilidade de uma
ressurgência de forças reacionárias que inflamam a população por meio do medo,
falso moralismo e bravatas vazias contra inimigos que eles mesmos fabricam.
A temporada também é hábil em encerrar os arcos desenvolvidos
até aqui, entregando desfechos dignos e coerentes para os principais
personagens, amarrando todas as pontas soltas deixadas em anos anteriores. No
entanto, a revelação de que a família Pontes foi a verdadeira responsável pela
morte de Ângela (Bella Camero) soa como uma desnecessária retificação de
continuidade, já que os personagens, até mesmo Isabel, já tinham razões
suficientes para quererem derrubar os corruptos.
A terceira temporada de Magnífica
70 é, portanto, um excelente desfecho para a série, refletindo sobre o
passado e futuro do Brasil além de lembrar da importância e potência da arte
para resistir a tempos conturbados.
Nota: 9/10
Trailer
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