quarta-feira, 13 de março de 2019

Crítica – Atlanta: Robbin’ Season


Análise Crítica – Atlanta: Robbin’ Season


Review – Atlanta: Robbin’ Season
Quando escrevi sobre a primeira temporada de Atlanta, mencionei o quanto a série era esquisita. Pois essa Robbin’ Season, sua segunda temporada, aposta ainda mais no bizarro e no absurdo, com muitos episódios entrando diretamente no terreno do realismo fantástico ou até mesmo do surrealismo. O título dessa segunda temporada, Robbin’ Season é referência ao período de algumas semanas antes do Natal no qual os roubos aumentam exponencialmente conforme o feriado se aproxima, criando uma literal “temporada de roubos”. O texto a seguir contem alguns SPOILERS.

Apesar de haver um arco grande envolvendo a tentativa de Earn (Donald Glover) em consolidar a carreira de seu primo Alfred (Brian Tyree Henry), o rapper Paper Boi, a maioria dos episódios funciona como histórias autocontidas com apenas algumas poucas referências ao arco maior. Tal como na primeira temporada, a série experimenta bastante com o formato e aqui arrisca a fazer vários episódios centrados em apenas um personagem, como o que mostra Alfred tentando cortar o cabelo, ou o que Vanessa vai a uma festa na casa do rapper Drake.

Os episódios sempre começam no meio de uma ação, jogando o espectador em meio aos eventos, sem dar muito contexto, e esse senso de deslocamento se eleva com as situações bizarras que os personagens encontram e variam entre o cômico e o perturbador. Um exemplo é o episódio em Vanessa vai para a casa de Drake. A personagem passa todo o episódio em busca do rapper para tirar uma selfie com ele e ganhar visibilidade nas redes sociais, ao final da busca Vanessa descobre que o cantor não está em casa, encontrando apenas o avô mexicano de Drake, que informa que o rapper também é mexicano.

Tudo isso é muito estranho considerando que Drake é canadense. Estaria a série tentando comentar sobre a disparidade no tratamento de imigrantes? Em como os EUA fazem tanta questão de criar barreiras com o México enquanto canadenses são tratados praticamente como nativos? É um comentário sobre como não realmente conhecemos nenhuma celebridade? Como muito na série, os significados são abertos ao espectador e muito disso é o que torna Atlanta tão intrigante de assistir. Esse episódio da festa também mostra nossa fixação pouco sadia com redes sociais, com Vanessa mais preocupada em ganhar likes ao aparecer com um famoso do que em aproveitar a festa.

Esses elementos estranhos também aparecem no episódio em que Alfred se perde na floresta ao fugir de assaltantes. No mato ele encontra um mendigo que oferece ajuda, mas o sem-teto logo ameaça Alfred com um estilete se o rapper não continuar seguindo em frente. É possível entender que tudo aquilo aconteceu literalmente, mas é também possível ver uma dimensão simbólica, já que tudo soa muito estranho para ser real. No início do episódio Alfred reclama com uma namorada que não vai ficar se promovendo em rede social, que prefere “se manter real”, já no fim do episódio, depois de sua experiência na floresta, ele não tem qualquer problema em tirar uma foto com um fã. É como se o que acontece na floresta operasse em um nível implícito no personagem e a ideia de continuar “andando adiante” simbolizasse a necessidade dele em mudar a mentalidade.

Nenhum episódio, no entanto, atinge o nível de bizarrice, tensão e tragicomédia do sexto episódio, intitulado Teddy Perkins. A trama leva Darius (Lakeith Stanfield) à mansão do excêntrico e recluso bilionário Teddy Perkins (Donald Glover) para pegar um piano colorido. Desde o início, o visual bizarro de Perkins, que remete ao cantor Michael Jackson, já causa um desconforto e a conduta estranha dele, como quando come um gosmento ovo de avestruz, aumenta ainda mais a impressão de que algo está terrivelmente errado. O episódio constrói um senso crescente de desconforto e tensão que remete ao recente Corra! (2017) ou a série Além da Imaginação, no qual desde o início sabemos que as coisas provavelmente não estão certas, mas não conseguimos precisar a razão.

Perkins foi um cantor que experimentou o sucesso e sofreu abusos físicos por parte de um pai autoritário na infância. O sucesso de Perkins se deu em uma banda formada ao lado do irmão (de novo, tudo remete a Michael Jackson) Benny. Benny vive em uma cadeira de rodas e não fala, tudo por conta de um acidente no passado. Seria fácil tomar tudo como um comentário sobre a psique fraturada de Michael Jackson, com Benny representando o Jackson do começo de carreira, pré-transformação física, cuja persona o cantor abandonou em algum canto escuro de sua mente, enquanto Teddy seria o Jackson dos últimos anos, com uma face estranha e uma conduta tão bizarra que beira o assustador.

A questão é que mais de servir como uma metáfora para Jackson, o episódio fala sobre violência, sobre uma vida de abuso faz alguém normatizar a violência ao ponto de achar natural e repetir o comportamento abusivo com outras pessoas. É sobre como um ciclo de abuso parece não ter outro desfecho além da tragédia e como uma vida sem afeto leva a consequências terríveis. É possível também ver aqui eco de outras obras como O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962), também uma história sobre fraternidade, abuso e o mundo artístico. Eu poderia fazer muitas outras associações ou leituras, mas este é um texto sobre a temporada inteira e não apenas um episódio. De todo modo Teddy Perkins é uma excelente peça de ficção televisiva e que merece ser vista até mesmo por quem não acompanha a série por conta de sua força criativa e suas várias possibilidades interpretativas.

Não é só de bizarrice, no entanto, que vive Atlanta. A série também encontra espaço para situações bem reais de preconceito, a exemplo do episódio que Earn tenta, sem sucesso, gastar uma nota de cem dólares, com todos os lugares o tratando como um bandido que está tentando passar notas falsas. Em outro, quando Earn e Vanessa vão para a cidade natal dela, a série aborda a natureza desigual do relacionamento entre eles, com Earn pensando em Vanessa como alguém em quem se apoiar e ocasionalmente fazer sexo enquanto Vanessa demonstra esperar algo mais sério e comprometido da relação. O texto talvez alivie um pouco o lado de Earn e a relativa objetificação que o protagonista faz de Vanessa, mas ainda assim confronta a imaturidade do personagem ao mostrar o quanto ele parece não se importar em mantê-la presa na esperança de um relacionamento mais sério.

Esquisita, polissêmica, inventiva e brilhante Atlanta: Robbin’ Season mostra as razões da série ser uma das melhores da atualidade.

Nota: 9/10

Trailer

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