Quando escrevi sobre a primeira temporada de Atlanta, mencionei o quanto a série era
esquisita. Pois essa Robbin’ Season,
sua segunda temporada, aposta ainda mais no bizarro e no absurdo, com muitos
episódios entrando diretamente no terreno do realismo fantástico ou até mesmo
do surrealismo. O título dessa segunda temporada, Robbin’ Season é referência ao período de algumas semanas antes do
Natal no qual os roubos aumentam exponencialmente conforme o feriado se
aproxima, criando uma literal “temporada de roubos”. O texto a seguir contem
alguns SPOILERS.
Apesar de haver um arco grande envolvendo a tentativa de
Earn (Donald Glover) em consolidar a carreira de seu primo Alfred (Brian Tyree
Henry), o rapper Paper Boi, a maioria dos episódios funciona como histórias
autocontidas com apenas algumas poucas referências ao arco maior. Tal como na
primeira temporada, a série experimenta bastante com o formato e aqui arrisca a
fazer vários episódios centrados em apenas um personagem, como o que mostra
Alfred tentando cortar o cabelo, ou o que Vanessa vai a uma festa na casa do rapper
Drake.
Os episódios sempre começam no meio de uma ação, jogando o
espectador em meio aos eventos, sem dar muito contexto, e esse senso de
deslocamento se eleva com as situações bizarras que os personagens encontram e
variam entre o cômico e o perturbador. Um exemplo é o episódio em Vanessa vai
para a casa de Drake. A personagem passa todo o episódio em busca do rapper
para tirar uma selfie com ele e
ganhar visibilidade nas redes sociais, ao final da busca Vanessa descobre que o
cantor não está em casa, encontrando apenas o avô mexicano de Drake, que
informa que o rapper também é mexicano.
Tudo isso é muito estranho considerando que Drake é
canadense. Estaria a série tentando comentar sobre a disparidade no tratamento
de imigrantes? Em como os EUA fazem tanta questão de criar barreiras com o
México enquanto canadenses são tratados praticamente como nativos? É um
comentário sobre como não realmente conhecemos nenhuma celebridade? Como muito
na série, os significados são abertos ao espectador e muito disso é o que torna
Atlanta tão intrigante de assistir.
Esse episódio da festa também mostra nossa fixação pouco sadia com redes
sociais, com Vanessa mais preocupada em ganhar likes ao aparecer com um famoso do que em aproveitar a festa.
Esses elementos estranhos também aparecem no episódio em que
Alfred se perde na floresta ao fugir de assaltantes. No mato ele encontra um
mendigo que oferece ajuda, mas o sem-teto logo ameaça Alfred com um estilete se
o rapper não continuar seguindo em frente. É possível entender que tudo aquilo
aconteceu literalmente, mas é também possível ver uma dimensão simbólica, já
que tudo soa muito estranho para ser real. No início do episódio Alfred reclama
com uma namorada que não vai ficar se promovendo em rede social, que prefere “se
manter real”, já no fim do episódio, depois de sua experiência na floresta, ele
não tem qualquer problema em tirar uma foto com um fã. É como se o que acontece
na floresta operasse em um nível implícito no personagem e a ideia de continuar
“andando adiante” simbolizasse a necessidade dele em mudar a mentalidade.
Nenhum episódio, no entanto, atinge o nível de bizarrice,
tensão e tragicomédia do sexto episódio, intitulado Teddy Perkins. A trama leva Darius (Lakeith Stanfield) à mansão do
excêntrico e recluso bilionário Teddy Perkins (Donald Glover) para pegar um
piano colorido. Desde o início, o visual bizarro de Perkins, que remete ao
cantor Michael Jackson, já causa um desconforto e a conduta estranha dele, como
quando come um gosmento ovo de avestruz, aumenta ainda mais a impressão de que
algo está terrivelmente errado. O episódio constrói um senso crescente de
desconforto e tensão que remete ao recente Corra!
(2017) ou a série Além da Imaginação,
no qual desde o início sabemos que as coisas provavelmente não estão certas,
mas não conseguimos precisar a razão.
Perkins foi um cantor que experimentou o sucesso e sofreu
abusos físicos por parte de um pai autoritário na infância. O sucesso de
Perkins se deu em uma banda formada ao lado do irmão (de novo, tudo remete a
Michael Jackson) Benny. Benny vive em uma cadeira de rodas e não fala, tudo por
conta de um acidente no passado. Seria fácil tomar tudo como um comentário
sobre a psique fraturada de Michael Jackson, com Benny representando o Jackson
do começo de carreira, pré-transformação física, cuja persona o cantor abandonou em algum canto escuro de sua mente,
enquanto Teddy seria o Jackson dos últimos anos, com uma face estranha e uma
conduta tão bizarra que beira o assustador.
A questão é que mais de servir como uma metáfora para
Jackson, o episódio fala sobre violência, sobre uma vida de abuso faz alguém
normatizar a violência ao ponto de achar natural e repetir o comportamento
abusivo com outras pessoas. É sobre como um ciclo de abuso parece não ter outro
desfecho além da tragédia e como uma vida sem afeto leva a consequências
terríveis. É possível também ver aqui eco de outras obras como O Que Terá Acontecido a Baby Jane?
(1962), também uma história sobre fraternidade, abuso e o mundo artístico. Eu
poderia fazer muitas outras associações ou leituras, mas este é um texto sobre
a temporada inteira e não apenas um episódio. De todo modo Teddy Perkins é uma excelente peça de ficção televisiva e que
merece ser vista até mesmo por quem não acompanha a série por conta de sua
força criativa e suas várias possibilidades interpretativas.
Não é só de bizarrice, no entanto, que vive Atlanta. A série também encontra espaço
para situações bem reais de preconceito, a exemplo do episódio que Earn tenta,
sem sucesso, gastar uma nota de cem dólares, com todos os lugares o tratando
como um bandido que está tentando passar notas falsas. Em outro, quando Earn e
Vanessa vão para a cidade natal dela, a série aborda a natureza desigual do
relacionamento entre eles, com Earn pensando em Vanessa como alguém em quem se
apoiar e ocasionalmente fazer sexo enquanto Vanessa demonstra esperar algo mais
sério e comprometido da relação. O texto talvez alivie um pouco o lado de Earn
e a relativa objetificação que o protagonista faz de Vanessa, mas ainda assim
confronta a imaturidade do personagem ao mostrar o quanto ele parece não se
importar em mantê-la presa na esperança de um relacionamento mais sério.
Esquisita, polissêmica, inventiva e brilhante Atlanta: Robbin’ Season mostra as razões
da série ser uma das melhores da atualidade.
Nota: 9/10
Trailer
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