O diretor Jordan Peele pegou todo mundo de surpresa com o
excelente Corra! (2017), no qual
usava o terror para falar sobre questões de racismo. Diante de uma estreia tão
extraordinária como diretor, a expectativa para este Nós, seu segundo filme, era alta e ele não decepciona.
A trama acompanha a família formada pelo casal Addy (Lupita
Nyong’o) e Gabe (Winston Duke) e seus dois filhos, Jason (Evan Alex) e Zora
(Shahadi Wright Joseph), que estão de férias em sua casa de praia. A
tranquilidade da família é interrompida quando casa é atacada por um grupo de doppelgängers,
ou “duplos”, pessoas completamente iguais a cada um dos membros da família.
Falar mais seria estregar a experiência de quem ainda vai
assistir, já que esse é um daqueles filmes que é melhor ver sabendo o mínimo
possível do que acontece. Tal como Corra!
a narrativa se presta a diferentes leituras enquanto metáfora para a sociedade e o
seu funcionamento. É possível ler os “duplos” que viviam no subterrâneo da
sociedade como uma metáfora para as camadas marginalizadas e desfavorecidas,
com a ideia de torná-los idênticos a outras pessoas um meio de identificar a
humanidade que há neles e o fato de que não são diferentes de nós.
Nesse sentido, o levante dos “duplos” seria uma
corporificação de um dos piores medos das classes altas, a de que os menos
favorecidos tomem consciência de sua posição de oprimido e decidam se rebelar.
Essa leitura é apoiada pela citação ao evento “Hands Across América” que
tentava chamar atenção para o combate à pobreza, como também as muitas citações
ao texto bíblico Jeremias 11:11 que diz “Portanto
assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar;
e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. O capítulo bíblico se refere a
uma quebra de uma aliança e o fato do filme usá-lo indica que o ataque dos
“duplos” seria uma espécie de justa retribuição por tudo que sofreram em sua
existência.
Do mesmo modo, o filme também pode ser lido como uma grande
metáfora para a dualidade do ser humano, como cada um de nós carrega consigo
uma potência de bondade ou de violência e cabe ao indivíduo decidir qual dessas
facetas irá prevalecer. Isso pode ser visto na reviravolta final, que
ressignifica o arco narrativo de um personagem do filme, ainda que relativamente
previsível, já que a maioria das histórias envolvendo “duplos” costuma ter uma
virada do tipo.
Lupita Nyong’o é o grande destaque do elenco ao nos
apresentar um sentimento palpável de temor como Addy e também na criação da persona sinistra e assustadora de Red, a
“dupla” de sua personagem, fazendo-a soar como uma pessoa completamente
diferente. O resto do elenco também é hábil em fazerem seus “duplos” parecerem
bem díspares dos “reais”, muitas vezes apostando em linguagens corporais
opostas. Assim, se Zora é aquele tipo de adolescente que está constantemente
mal-humorada e reclamando de tudo, sua “dupla” está com um constante, perene e
arrepiante sorriso no rosto.
Há também uma oposição no uso das cores nos personagens.
Enquanto todos os “duplos” usam o mesmo macacão vermelho, os personagens
“reais” tem cada um sua cor própria, como o branco e amarelo para Addy, o rosa
para Kitty (Elizabeth Moss) ou o verde para Zora. A ideia parece ser mostrar
como os “duplos” são um conjunto sem identidade própria enquanto as pessoas
“reais” são indivíduos singulares.
Tal como em Corra!,
Peele é bastante hábil em criar sequências carregadas de tensão, que nos fazem
temer pelo destino dos personagens e ocasionalmente berrar para a tela quando
eles fazem algo descuidado (sim, sou desses). Todo o segmento da invasão
inicial e também aquele em que a família vai para a casa de Kitty são tão
cheios de suspense que eu estava à beira do assento durante boa parte deles. O
desfecho, porém, deixa um pouco a desejar ao tentar dar uma explicação “real”
(dentro do universo do filme, claro) para o fenômeno dos duplos, já que faz
isso em uma longa cadeia de diálogos expositivos que quebram o ritmo do clímax
e também por não ser algo que carecia de explicação, operando mais em um nível
simbólico do que literal.
Nós é mais um
terror extremamente competente feito pelo diretor Jordan Peele, criando um
clima de constante tensão e provocando uma reflexão sobre a estrutura social e
a conduta humana.
Nota: 9/10
Trailer
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