quinta-feira, 18 de abril de 2019

Crítica – Amor Até as Cinzas


Análise Crítica – Amor Até as Cinzas


Review – Amor Até as Cinzas
O diretor chinês Jia Zhang-ke volta a tratar de temas que lhe são caros neste Amor Até as Cinzas. A trama se estende ao longo de vários anos para falar de tempo, memória e afeto, algo que Zhang-ke já tinha explorado em filmes anteriores, como o primoroso As Montanhas Se Separam (2016), e dá ao filme a sensação de que estamos vendo um músico tocando seu maiores sucessos. Pode não levar adiante o que ele já tinha feito antes, mas é consistente o bastante para oferecer uma boa experiência.

A trama começa em 2001. Qiao (Tao Zhao) mora em uma pequena vila mineradora no interior da China e namora o pequeno gângster Bin (Fan Liao) que trabalha para um grande empresário do ramo imobiliário. Quando o chefe de Bin morre, ele acaba colocado em uma posição de liderança para a qual não estava preparado, se tornando um alvo para grupos rivais. Um dia, Bin é atacado por um grupo grande de adversários e, sem outro meio para ajudar o namorado, Qiao saca uma arma de fogo que Bin tinha guardada no carro, espantando os bandidos rivais. Qiao e Bin acabam presos e a protagonista se recusa a entregar o namorado, dizendo que a arma pertencia a ela. Assim, Qiao pega uma pena muito maior do que a de Bin, saindo da prisão cinco anos depois.

Não é a primeira vez que Zhang-ke escolhe situar uma trama no início dos anos 2000, momento de grande expansão econômica da China. É uma maneira de observar as transformações no país, dos conflitos e anacronismos entre tradição e modernidade. Um exemplo é o funeral do chefe de Bin, no qual o morto é homenageado com uma performance de dança de salão, algo que ele adorava. A imagem da dança de cha-cha-cha em meio a uma cerimônia fúnebre serve de símbolo para o descompasso da China, um país entre dois modos de vida que talvez não sejam capazes de dialogar entre si.

A decisão de Qiao em procurar Bin depois de sair da cadeia não é apenas por uma questão de dependência afetiva, mas uma espécie de tentativa dela de manter as coisas exatamente como eram antes de ir presa. É como se Qiao se recusasse a aceitar a passagem do tempo e as transformações que decorrem dessa passagem. É uma personagem presa a um passado que não tem volta, se recusando a entender a erosão do tempo e a perceber que seu idealismo romântico não serviu para nada.

A busca por Bin é, no fim das contas, uma busca por si mesma, para tentar descobrir que possibilidade de futuro ela tem (ou ainda pode ter) em um país que para ela se tornou irreconhecível, um mundo que seguiu andando enquanto ela ficou parada no tempo. Ela crê que essas experiências duras pelas quais passou servirão para torná-la melhor, mais apta, algo que fica evidente no diálogo que ela tem com Bin diante de uma paisagem vulcânica. Ela lembra de uma citação afirmando que as cinzas vulcânicas são as mais brancas por conta da intensa temperatura que queimam.

A ideia é que algo que passa por um fogo tão intenso só pode terminar purificada por tudo isso, livre de impurezas, certa de sua essência. Provavelmente é essa pureza que Qiao espera alcançar depois de todos os seus percalços, mas seu futuro, no entanto, está longe disso. Em seu terceiro ato o filme faz mais uma passagem temporal e vemos que Qiao e Bin são cinzas escurecidas de si mesmos, erodidos, desgastados, mas não purificados. O tempo e as dificuldades não os retornaram à essência, os afastou dela, resultando em um desfecho tomado pela melancolia e incerteza.

Claro, todas essas reflexões sobre tempo, memória e afeto estão longe de ser novidade no cinema de Zhang-ke, mas seu olhar cuidadoso para os anacronismos da vida dos personagens e do país, bem como a intensa atuação de Tao Zhao tornam difícil não se envolver com o que está em tela. Desta maneira, mesmo não dizendo nada que Jia Zhang-ke não tenha dito antes, Amor Até as Cinzas é um contundente reflexão sobre nossa relação com o tempo e o afeto.


Nota: 8/10

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