Quando escrevi sobre as duas
temporadas anteriores de The Good Fight,
mencionei o aspecto combativo da série, de como ela não tinha papas na língua
em falar de questões espinhosas de cunho social e político contemporâneos. A
questão é que nessa terceira temporada toda essa combatividade acaba soando um
pouco sensacionalista demais, principalmente quando mira diretamente na
administração Trump, e muito cheio de si, como se a série tivesse certeza de
que seu conteúdo será decisivo para derrubar o presidente ou garantir que ele
não se reeleja.
Na trama, Kurt (Gary Cole), marido
de Diane (Christine Baranski), acaba aceitando um cargo na atual administração,
para a decepção de Diane, que teme que o marido esteja sendo usado como bobo da
corte por Trump. Ao mesmo tempo a firma de Diane se envolve em um processo
contra o inescrupuloso advogado Roland Blum (Michael Sheen), disposto a vencer
mesmo tendo que mentir.
Como é de costume, a série trata
de temas complexos como o racismo e a ascensão de grupos fascistoides. O
episódio no qual Lucca (Cush Jumbo) é tratada primeiro como babá e depois como
criminosa por estar andando na rua com o filho, que é branco, é um bom exemplo
de como manifestações de racismo que podem parecer inicialmente inofensivas
(confundi-la com uma babá) rapidamente escalam para algo perigoso.
Do mesmo modo, um episódio
posterior mostra Jay (Nyambi Nyambi) enfrenta um grupo de neonazistas e a série
argumenta com consistência que certos discursos (como o dos nazistas) não
merecem a visibilidade da esfera pública porque dar visibilidade a eles é
legitimá-los, é dizer que o ponto de vista deles é igual a qualquer outro. É
uma questão que não é simples, mas o texto entende bem a noção do “paradoxo da
tolerância”, no sentido de que se tolerarmos a difusão de ideias
indubitavelmente intolerantes seremos devorados por essa intolerância.
Temas como machismo e
discriminação racial no ambiente de trabalho são abordados quando a série se
debruça sobre a dinâmica de funcionamento da firma no qual as personagens
trabalham e a série reconhece que não há uma resolução fácil para esses temas
já que existem diferentes tipos e níveis de discriminação acontecendo ao mesmo
tempo (de cor, classe, gênero, etc). O episódio final ainda usa Lucca para
discutir a polêmica questão do colorismo, com Lucca sendo preterida em uma
promoção por ter um tom de pele mais claro, não sendo “negra o bastante” para
representa uma firma de negros. O texto transita com cuidado pelas ambiguidades
da questão, reconhecendo o quão absurdo esse discurso pode soar, mas ao mesmo
tempo atenta como Lucca transita muito mais fácil entre brancos e se conecta
mais fácil com eles.
Todo esse cuidado e ambiguidade,
porém, desaparecem quando a série aborda temas diretamente relacionados com o
governo Trump, constantemente adotando um tom alarmista de “fim dos tempos” ou
tentando transformar a série em uma trama de intrigas ou espionagem ao fazer
Diane arregimentar uma “resistência”. Claro, a tal resistência serve para
mostrar os perigos de se rebaixar a usar as mesmas estratégias do atual governo
para tentar derrotá-lo, sacrificando a autoridade moral por eficácia e assim se
igualando àqueles que você se opõe. A questão é que isso fica claro desde os
primeiros episódios, mas a temporada adota uma lógica repetitiva para esse
arco, com Diane se afastando do grupo por achar que elas foram “longe demais”,
apenas para depois retornar a eles quando um novo problema surge e assim
sucessivamente.
Quando escrevi sobre a temporada anterior, mencionei que havia um
tom relativamente farsesco nesse viés da espionagem, como se a série
reconhecesse o absurdo de tudo isso, mas aqui toda a questão da “resistência” é
levada completamente a sério e destoa do restante do material.
Há também o problema das incessantes menções a pessoas e
eventos reais do governo Trump que me fazem pensar sobre a sobrevivência à
longo prazo da série. Afinal, esses episódios continuarão a ter impacto quando
os revisitarmos anos depois de Trump já ter deixado o poder? Outra questão é: o
que a série vai fazer depois que Trump sair da presidência (e há chance disso
acontecer ano que vem) e eles perderem seu saco de pancadas? Vão simplesmente
pendurar as chuteiras e encerrar a série? Como falei antes, talvez fosse melhor
construir um discurso em cima de símbolos e metáforas, criticando o
autoritarismo e desonestidade de governos em termos mais gerais.
Em alguns momentos, inclusive, há a impressão de que a série
tenta construir como verdade coisas que estão no mero reino da conjectura, a
exemplo do episódio envolvendo um possível divórcio da Melania Trump. Claro, a
série deixa ambíguo se era ou não a Melania real conversando com Lucca, mas
ainda assim, qual o ponto de tudo aquilo? A verdade é que ninguém tem como
saber se Melania é ou não refém do marido e saber essa informação não serve
para muita coisa em termos de construir uma oposição a Trump, então todo o
episódio soa como uma imensa perda de tempo.
O pior problema são os “curtas animados” que aparecem em
meio aos episódios. Esses segmentos encapsulam toda a empáfia e boçalidade da
atual temporada, bem como seu senso de absoluta superioridade intelectual sobre
quem quer que seja. Os curtas tentam mastigar conceitos e histórias de maneira
acessível e engraçadinha, mas a questão é que eles não explicam nada de
realmente complexo ou difícil. Coisas como a noção de um “acordo de não
divulgação” ou a história de Roy Cohn podiam ser ditas em uma ou duas linhas de
diálogo, mas a série subestima tanto a inteligência de seu público e se acha
tão superior que pensa que literalmente precisa desenhar suas ideias para se
fazer entender.
Isso fica terrivelmente claro no final da temporada, quando
Diane recorre a desenhos para fazer um beócio juiz entender seus argumentos
sobre justa compensação. Considerando que o traço dos desenhos usados pela
personagem são os mesmos dos curtas, há uma incômoda relação no modo como a
personagem trata o juiz e como a série trata seu público.
É, no entanto, graças ao carisma dos personagens que a série
se sustenta. Isso vai desde o afeto genuíno entre Kurt e Diane apesar de suas
divergências políticas, passando pela personalidade Marissa (Sarah Steele) ou
das tentativas de Lucca de assumir uma nova posição no trabalho. Como de
costume desde The Good Wife, a série
também brilha na criação de excêntricos personagens coadjuvantes e nessa
temporada o destaque fica por conta do ardiloso Roland Blum, vivido por Michael
Sheen com uma alegria maligna. Tal como o Mike Kresteva (Matthew Perry) de The Good Wife, Blum é aquele tipo de
vilão que dá gosto de odiar, tão ardiloso, escorregadio e desonesto que ele é.
O elo fraco acaba sendo o arco de Maia (Rose Leslie), em
especial a maneira como ele encerra. É compressível que ela tenha resolvido se
aliar a Blum, afinal ela estava presa a um emprego sem futuro e uma carreira
estagnada, mas a extrema lealdade dela em relação ao trapaceiro advogado não
soa devidamente bem construída. A personagem chega a falar algo sobre ele ser
previsível e por sempre saber exatamente o que ele fará em oposição às
constantes intrigas e reviravoltas na firma de Diane, mas ainda assim é
estranho ver uma personagem que sempre lutou contra a mácula da desonestidade
do pai (inclusive deixando de usar o sobrenome Rindell) aceite tão fácil
trabalhar para alguém tão inescrupuloso. Eu entendo a decisão de Maia de não
voltar para Diane, considerando que Maia já estava farta de toda a politicagem
da firma, mas não soa devidamente merecida a escolha dela em se tornar uma
acólita de Blum.
A terceira temporada de The
Good Fight continua acertando na sua cuidadosa construção de debates ao
redor de temas espinhosos e no carisma de seus personagens, mas passa do ponto
em seu discurso político.
Nota: 7/10
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