As chamadas “chanchadas” eram filmes de comédia de cunho
popular feitas no Brasil dos anos 30 aos anos 50 aproximadamente. Durante um
bom tempo foram consideradas um gênero “maldito” ou “inferior”, parte disso vinha
do discurso de cineastas do movimento do Cinema Novo que viam as chanchadas
como algo raso, alienante e vazio. Eles não estavam completamente errados, já
que muita coisa, principalmente no final dos anos 50, de fato não tinha muito a
oferecer ao espectador além de fórmulas manjadas.
Essas críticas, no entanto, impediram por muito tempo que se
percebesse o potencial expressivo de muitas das primeiras chanchadas e de
filmes comandados por realizadores como Watson Macedo, Carlos Manga ou José
Carlos Burle. Um dos filmes que melhor resume as qualidades dessas chanchadas
talvez seja Carnaval Atlântida,
lançado em 1952 e dirigido por Burle. Na época, a Atlântida, junto com a
Cinédia, era uma das maiores produtoras de cinema no Brasil daquele período. A
trajetória da produtora chegou a ser retratada no documentário Assim Era a Atlântida (1974), que ajuda
a entender esse período importante e pouco pesquisado do cinema brasileiro.
A trama de Carnaval
Atlântida é centrada na produtora comandada por Cecílio B. DeMilho (Renato
Restier), uma nome feito claramente para parodiar o produtor e diretor
hollywoodiano Cecil B. DeMille. DeMilho quer que seu próximo filme seja uma
superprodução baseada na história de Helena de Tróia e contrata um especialista
em história grega, o professor Xenofontes (Oscarito) para ajudar na tarefa. Ao
mesmo tempo, os atores do estúdio, como Augusto (Cyll Farney), Regina (Eliana
Macedo) e os dois assistentes Piro (Colé Santana) e Miro (Grande Otelo) tentam
convencer Cecílio a fazer uma comédia carnavalesca.
Tal como muitos musicais, incluindo os hollywoodianos, há
aqui um conflito entre uma cultura mais elitizada e uma cultura popular. Em Carnaval Atlântida, no entanto, há também
um certo elemento de nacionalismo nesse embate. A “alta” cultura, a cultura que
DeMilho valoriza, é a cultura europeia e estrangeira. Assim, a elite cultural
brasileira é vista como uma elite colonizada e com síndrome de vira-lata,
subserviente a ideais estrangeiros e modelos artísticos estrangeiros (como o modelo cinematográfico hollywoodiano), mas que despreza tudo que é tipicamente
brasileiro, em especial manifestações que derivam de espaços periféricos como
era o samba naquele momento.
Nesse sentido a ideia de carnaval vem para servir não apenas
um propósito literal, do carnaval brasileiro como o conhecemos, mas a ideia de
carnaval como uma subversão ou inversão da ordem natural (e já vimos que essa
ordem é eurocêntrica e colonizada). Nesse sentido, para o filme (e muitas
chanchadas do período) a valorização de manifestações culturais como o samba, o
carnaval ou o forró (como acontece em outras chanchadas) é um ato de
resistência. O uso dessa cultura popular é uma tentativa de construir uma
identidade nacional própria, sem precisar ficar recorrendo a matrizes culturais
ou identitárias de países colonizadores.
Claro, eventualmente coisas como carnaval e samba acabaram
sendo reduzidos a estereótipos preconceituosos, mas nesse momento e em décadas
anteriores, era uma maneira de resistir a influências externas e tentar
encontrar o que é tipicamente nosso. É curioso que o Cinema Novo, tão crítico
das chanchadas, também tinha como ideia realizar um esforço “descolonizador” e
pensar a identidade nacional, ainda que com outro viés. Se o Cinema Novo o
fazia por uma abordagem mais crítica, política e estética (vide da noção de
“estética da fome” de Glauber Rocha), as chanchadas faziam isso através da
comédia (um gênero que historicamente sempre foi considerado “inferior”) e do
deboche, expondo ao ridículo o viralatismo da elite cultural brasileira, tanto
na figura de DeMilho quanto no professor Xenofonte, mostrando que olhamos
demais para fora e pouco para nós mesmos.
É a comédia e os personagens cômicos que guiam a história.
Por mais que exista uma trama romântica entre Augusto e Regina ou a tentativa
dos dois de mudar a cabeça de DeMilho e Xenofonte quanto ao filme, é a dupla
cômica que resolve todos esses arcos. São os dois assistentes de produção
vividos por Grande Otelo e Colé Santana que fazem Xenofonte mudar de ideia,
entre outras coisas na divertida cena da sauna. Também são eles que resolvem a
trama romântica ao desmascarar o vilão, o Conde Verdura (José Lewgoy, que
constantemente vivia os vilões das chanchadas), como uma fraude, abrindo
caminho para o enlace entre Augusto e Regina.
Desta maneira, Carnaval
Atlântida é um ótimo exemplo de como as chanchadas usavam a comédia e o
deboche para expressar questões relacionadas à identidade nacional e ao
viralatismo do brasileiro.
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