Coringa foi uma
aposta arriscada. Em meio a uma tentativa trôpega de emplacar um universo
cinematográfico compartilhado, a Warner decide fazer um filme de origem sobre
seu principal vilão completamente divorciado de seu projeto de universo
compartilhado e voltado para o público adulto. Parecia ser uma tentativa de
chamar atenção ou tentar se manter relevante ao se diferenciar da principal
concorrência, mas mostra que eles entenderam algo que a Fox já tinha
demonstrado entender com Logan (2017)
e que a Disney/Marvel parece ainda não ter entendido: filmes baseados em
quadrinhos tem potencial de ser muito mais do que meramente passatempos ou
aventuras adolescentes. Que há um potencial expressivo e artístico enorme nesse
material e não é necessário se limitar a blockbusters
de ação.
A trama de Coringa
se passa no início da década de 80 e é centrada
em Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem com problemas mentais que vive com
a mãe em um pequeno apartamento e tenta se tornar comediante de stand-up. Para sobreviver Arthur faz
bicos de palhaço, mas as ruas de Gotham são um lugar hostil e mesmo alguém
pacato como Arthur é constantemente vítima de violência e maus tratos.
A Gotham retratada aqui pelo diretor Todd Phillips remete à
Nova Iorque retratada no cinema hollywoodiano dos anos 60 e 70, também uma
metrópole decadente e hostil, com um enorme abismo entre ricos e pobres no qual
os marginalizados lutavam para sobreviver. Um espaço excludente que isolava
quem não se encaixava em padrões de normalidade, criando um isolamento e alienação
que leva as pessoas a extremos. São claras aqui as influências de filmes como Perdidos na Noite (1969) ou Taxi Driver (1976). Na verdade a
estrutura da trama é praticamente uma costura entre Taxi Driver, ao abordar um sujeito solitário e com problemas
mentais que vai aos poucos abandonando a razão e abraçando a violência, e O Rei da Comédia (1982), que mostrava um
comediante fracassado desenvolvendo uma obsessão pouco saudável por um
apresentador de talk show que
eventualmente lhe trata mal. Apesar de uma costura familiar, a trama e os personagens conseguem ter personalidade suficientes para se sustentarem por conta própria e evitar que o filme soe como algo derivativo.
Inclusive é bastante significativo que Robert De Niro, que
interpretou os protagonistas de Taxi
Driver e O Rei da Comédia, seja
aqui escalado para ser Murray, o apresentador com quem Arthur sonha em
conhecer. Para além de uma homenagem, a escalação de De Niro serve para denotar
a continuidade desses processos de alienação e como toda essa estrutura social
excludente opera de maneira cíclica. É como se o Rupert Pupkin de O Rei da Comédia tivesse se tornado um
apresentador de sucesso e agora repetisse as mesmas condutas que o tiraram do
sério e, desta maneira, o filme nos lembra que todas essas estruturas desiguais
não começaram agora, mas persistem por décadas.
A trama é também esperta em deixar muitas lacunas e
elementos abertos à interpretação, afinal o Coringa é uma criatura de caos e
dar a ele uma origem certinha e quadrada não seria coerente com a jornada do
personagem. Ciente disso, o filme constrói Arthur como um narrador não
confiável, constantemente se perdendo em fantasias e devaneios que se misturam
com a realidade e assim muitos elementos, como sua paternidade, ficam abertos à
interpretação. Desta maneira, o texto consegue contar uma origem do personagem
sem, no entanto, deixar de ser um relato caótico, instável e não completamente
confiável.
O que não é aberto a interpretação, no entanto, é a natureza
e motivação de Arthur uma vez que ele assume a persona de Coringa. Talvez cientes de que o filme pudesse ser lido
como inflamatório ou que romantizasse a crueldade, os realizadores trabalham
para deixar bastante explícito que o Coringa não incita a estabilidade social
como um gesto político. Ele não é um revolucionário lutando pelos direitos das
pessoas, ele não usa da agressão como uma forma de justiça, mas um sádico
narcisista que mata e instiga o caos porque sente prazer na violência e na
atenção que recebe. Por mais que suas motivações para recorrer a violência
sejam compreensíveis e aconteçam por conta de estruturas sociais e políticas, elas não são justificáveis.
Isso fica evidente quando o Coringa vai ao programa de
Murray e diz com todas as letras que não se interessa por política e vê todo o
caos e revolta como uma grande comédia. Na mesma cena o personagem fala que não
vai viver mais pelas normas de outras pessoas e sim pelas próprias, o que mais
uma vez explicita o comportamento sociopata dela, que sabe da existência de
normas, leis e códigos de ética que regem nossa conduta, mas escolhe
deliberadamente ignorar toda essas normas para viver apenas para sua própria
satisfação.
O fato do Coringa ser retratado como um narcisista
sociopata, porém, não significa que ele é um personagem unidimensional. Arthur
é, inicialmente, um sujeito do qual sentimos pena, alguém ingênuo que é a todo
momento brutalizado, enganado, humilhado
pelas pessoas ao seu redor e tratado como uma aberração por conta de seus
problemas mentais. Ele exibe uma enorme carência afetiva, não convivendo com
ninguém além da mãe que claramente exibe uma instabilidade mental, ele anseia
por uma figura paterna e vê qualquer imagem de autoridade como um possível
substituto por esse pai que não conheceu.
O trabalho de Joaquin Phoenix é hábil em denotar a
fragilidade e inadequação de Arthur que se manifesta de maneira muito evidente
em seus acessos incontroláveis de riso que funcionam como um mecanismo de
defesa psicológico do personagem. Nesses momentos Phoenix consegue nos fazer
perceber o descompasso entre o corpo e a mente do personagem. Apesar da boca
estar rindo, os olhos dele transmitem o nervosismo, embaraço e vergonha de
Arthur.
Do mesmo modo com o qual nos faz sentir pena de Arthur,
Phoenix também nos faz temê-lo pelo modo jubiloso com o qual ele se comporta ao
cometer atos de violência. Ao executar seus primeiros assassinatos, Arthur
corre e se tranca em um banheiro público e nesse momento imaginamos que ele irá
gritar ou se desesperar com o crime que acabou de cometer, mas ao invés disso
ele começa a dançar e o que seu corpo transmite para nós não é insegurança,
medo ou nervosismo, mas puro deleite e plenitude, como se Arthur estivesse
tendo seu primeiro momento real de alegria ao assassinar aquelas pessoas. E ver
alguém tão confortável e feliz com uma violência tão crua é verdadeiramente
assustador.
A transformação de Arthur na persona do Coringa e a satisfação crescente com o caos de suas
ações é também transmitida pela fotografia, que começa cinzenta, sombria e
dessaturada, mas conforme Arthur vai se tornando o Coringa tudo fica mais
luminoso e colorido (em parte pelos figurinos que ele começa a usar), como se
seu mundo finalmente começasse a fazer sentido. A música é outro elemento usado
de modo significativo. Canções não originais como Smile e Send in the Clowns
não são colocadas apenas por referenciarem palhaços ou sorrisos.
A letra de Send in the
Clowns fala sobre uma pessoa em um relacionamento fracassado e a menção à
entrada de palhaços remete ao teatro de vaudeville
no qual palhaços eram rapidamente ao palco quando uma atração dava errado para
encherem o tempo e manterem o público distraído enquanto o problema era
corrigido. A chegada do palhaço, na letra da música, é, portanto,
simultaneamente um indicativo de problema, um sinal de que as coisas deram errado,
como também um símbolo de uma distração dos problemas reais. Na trama do filme
a aparição do Coringa é permeada por essa mesma carga simbólica, servindo como
um indicativo de tudo que está errado naquela sociedade (toda a instabilidade,
egoísmo, maus tratos e desigualdade), mas também como uma distração para esses
problemas, um caos violento e autodestrutivo que parece resolver alguma coisa,
mas que na verdade não tem propósito algum a não ser chamar atenção para si
mesmo.
Com uma excelente interpretação de Joaquin Phoenix, Coringa é uma jornada sombria e complexa
sobre violência, caos e instabilidade mental.
Nota: 9/10
Trailer
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