domingo, 6 de outubro de 2019

Crítica - Coringa

Análise Crítica - Coringa


Review - Coringa
Coringa foi uma aposta arriscada. Em meio a uma tentativa trôpega de emplacar um universo cinematográfico compartilhado, a Warner decide fazer um filme de origem sobre seu principal vilão completamente divorciado de seu projeto de universo compartilhado e voltado para o público adulto. Parecia ser uma tentativa de chamar atenção ou tentar se manter relevante ao se diferenciar da principal concorrência, mas mostra que eles entenderam algo que a Fox já tinha demonstrado entender com Logan (2017) e que a Disney/Marvel parece ainda não ter entendido: filmes baseados em quadrinhos tem potencial de ser muito mais do que meramente passatempos ou aventuras adolescentes. Que há um potencial expressivo e artístico enorme nesse material e não é necessário se limitar a blockbusters de ação.

A trama de Coringa se passa no início da década de 80 e é centrada em Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem com problemas mentais que vive com a mãe em um pequeno apartamento e tenta se tornar comediante de stand-up. Para sobreviver Arthur faz bicos de palhaço, mas as ruas de Gotham são um lugar hostil e mesmo alguém pacato como Arthur é constantemente vítima de violência e maus tratos.

A Gotham retratada aqui pelo diretor Todd Phillips remete à Nova Iorque retratada no cinema hollywoodiano dos anos 60 e 70, também uma metrópole decadente e hostil, com um enorme abismo entre ricos e pobres no qual os marginalizados lutavam para sobreviver. Um espaço excludente que isolava quem não se encaixava em padrões de normalidade, criando um isolamento e alienação que leva as pessoas a extremos. São claras aqui as influências de filmes como Perdidos na Noite (1969) ou Taxi Driver (1976). Na verdade a estrutura da trama é praticamente uma costura entre Taxi Driver, ao abordar um sujeito solitário e com problemas mentais que vai aos poucos abandonando a razão e abraçando a violência, e O Rei da Comédia (1982), que mostrava um comediante fracassado desenvolvendo uma obsessão pouco saudável por um apresentador de talk show que eventualmente lhe trata mal. Apesar de uma costura familiar, a trama e os personagens conseguem ter personalidade suficientes para se sustentarem por conta própria e evitar que o filme soe como algo derivativo.

Inclusive é bastante significativo que Robert De Niro, que interpretou os protagonistas de Taxi Driver e O Rei da Comédia, seja aqui escalado para ser Murray, o apresentador com quem Arthur sonha em conhecer. Para além de uma homenagem, a escalação de De Niro serve para denotar a continuidade desses processos de alienação e como toda essa estrutura social excludente opera de maneira cíclica. É como se o Rupert Pupkin de O Rei da Comédia tivesse se tornado um apresentador de sucesso e agora repetisse as mesmas condutas que o tiraram do sério e, desta maneira, o filme nos lembra que todas essas estruturas desiguais não começaram agora, mas persistem por décadas.

A trama é também esperta em deixar muitas lacunas e elementos abertos à interpretação, afinal o Coringa é uma criatura de caos e dar a ele uma origem certinha e quadrada não seria coerente com a jornada do personagem. Ciente disso, o filme constrói Arthur como um narrador não confiável, constantemente se perdendo em fantasias e devaneios que se misturam com a realidade e assim muitos elementos, como sua paternidade, ficam abertos à interpretação. Desta maneira, o texto consegue contar uma origem do personagem sem, no entanto, deixar de ser um relato caótico, instável e não completamente confiável.

O que não é aberto a interpretação, no entanto, é a natureza e motivação de Arthur uma vez que ele assume a persona de Coringa. Talvez cientes de que o filme pudesse ser lido como inflamatório ou que romantizasse a crueldade, os realizadores trabalham para deixar bastante explícito que o Coringa não incita a estabilidade social como um gesto político. Ele não é um revolucionário lutando pelos direitos das pessoas, ele não usa da agressão como uma forma de justiça, mas um sádico narcisista que mata e instiga o caos porque sente prazer na violência e na atenção que recebe. Por mais que suas motivações para recorrer a violência sejam compreensíveis e aconteçam por conta de estruturas sociais e políticas, elas não são justificáveis.

Isso fica evidente quando o Coringa vai ao programa de Murray e diz com todas as letras que não se interessa por política e vê todo o caos e revolta como uma grande comédia. Na mesma cena o personagem fala que não vai viver mais pelas normas de outras pessoas e sim pelas próprias, o que mais uma vez explicita o comportamento sociopata dela, que sabe da existência de normas, leis e códigos de ética que regem nossa conduta, mas escolhe deliberadamente ignorar toda essas normas para viver apenas para sua própria satisfação.

O fato do Coringa ser retratado como um narcisista sociopata, porém, não significa que ele é um personagem unidimensional. Arthur é, inicialmente, um sujeito do qual sentimos pena, alguém ingênuo que é a todo momento brutalizado, enganado,  humilhado pelas pessoas ao seu redor e tratado como uma aberração por conta de seus problemas mentais. Ele exibe uma enorme carência afetiva, não convivendo com ninguém além da mãe que claramente exibe uma instabilidade mental, ele anseia por uma figura paterna e vê qualquer imagem de autoridade como um possível substituto por esse pai que não conheceu.

O trabalho de Joaquin Phoenix é hábil em denotar a fragilidade e inadequação de Arthur que se manifesta de maneira muito evidente em seus acessos incontroláveis de riso que funcionam como um mecanismo de defesa psicológico do personagem. Nesses momentos Phoenix consegue nos fazer perceber o descompasso entre o corpo e a mente do personagem. Apesar da boca estar rindo, os olhos dele transmitem o nervosismo, embaraço e vergonha de Arthur.

Do mesmo modo com o qual nos faz sentir pena de Arthur, Phoenix também nos faz temê-lo pelo modo jubiloso com o qual ele se comporta ao cometer atos de violência. Ao executar seus primeiros assassinatos, Arthur corre e se tranca em um banheiro público e nesse momento imaginamos que ele irá gritar ou se desesperar com o crime que acabou de cometer, mas ao invés disso ele começa a dançar e o que seu corpo transmite para nós não é insegurança, medo ou nervosismo, mas puro deleite e plenitude, como se Arthur estivesse tendo seu primeiro momento real de alegria ao assassinar aquelas pessoas. E ver alguém tão confortável e feliz com uma violência tão crua é verdadeiramente assustador.

A transformação de Arthur na persona do Coringa e a satisfação crescente com o caos de suas ações é também transmitida pela fotografia, que começa cinzenta, sombria e dessaturada, mas conforme Arthur vai se tornando o Coringa tudo fica mais luminoso e colorido (em parte pelos figurinos que ele começa a usar), como se seu mundo finalmente começasse a fazer sentido. A música é outro elemento usado de modo significativo. Canções não originais como Smile e Send in the Clowns não são colocadas apenas por referenciarem palhaços ou sorrisos.

A letra de Send in the Clowns fala sobre uma pessoa em um relacionamento fracassado e a menção à entrada de palhaços remete ao teatro de vaudeville no qual palhaços eram rapidamente ao palco quando uma atração dava errado para encherem o tempo e manterem o público distraído enquanto o problema era corrigido. A chegada do palhaço, na letra da música, é, portanto, simultaneamente um indicativo de problema, um sinal de que as coisas deram errado, como também um símbolo de uma distração dos problemas reais. Na trama do filme a aparição do Coringa é permeada por essa mesma carga simbólica, servindo como um indicativo de tudo que está errado naquela sociedade (toda a instabilidade, egoísmo, maus tratos e desigualdade), mas também como uma distração para esses problemas, um caos violento e autodestrutivo que parece resolver alguma coisa, mas que na verdade não tem propósito algum a não ser chamar atenção para si mesmo.

Com uma excelente interpretação de Joaquin Phoenix, Coringa é uma jornada sombria e complexa sobre violência, caos e instabilidade mental.

Nota: 9/10


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