Em uma determinada cena de A Vida Invisível, alguém pergunta para uma das protagonistas, Guida
(Julia Sotckler), qual o sexo de seu filho recém-nascido. Quando Guida responde
que é homem a autora da pergunta prontamente diz “sorte dele”. Parece um
instante menor dentro da trama, quase inconsequente, mas diz muito sobre o
lugar da mulher na sociedade brasileira da década de cinquenta, época na qual o
filme se passa.
A trama é baseada no romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão de Martha Batalha (que,
confesso, não li) e segue duas irmãs vivendo no Rio de Janeiro da década de
cinquenta. Guida está apaixonada por um marinheiro grego e foge de casa para ir
com ele para a Grécia. A família fica sem notícias de Guida por quase um ano e,
nesse tempo, Eurídice (Carol Duarte), a irmã de Guida, se casa com o
funcionário público Antenor (Gregório Duvivier). Guida volta para o Brasil
grávida depois de ter deixado o marido, mas os pais dela a expulsam de casa e
dizem que Eurídice está morando fora do Brasil, estudando para ser pianista.
Assim, acompanhamos as vidas dessas duas mulheres e suas respectivas famílias,
sendo que nenhuma das duas está satisfeita com o rumo de suas trajetórias.
A jornada delas mostra a perspectiva feminina da sociedade
carioca de meados do século vinte, um período no qual as mulheres tinham pouca
autonomia sobre as próprias vidas. Nesse sentido, o título revela como essas
mulheres são, de certa forma, coadjuvantes em seus próprios destinos. Toda
grande virada na vida delas acontece por conta de decisões tomadas por homens.
Eurídice deixa de estudar por conta do marido, quando descobre que está grávida
não tem sequer autonomia para decidir o que fazer porque o médico avisa o
marido dela e os dois tomam todas as decisões por ela. Já Guida é separada da
irmã por conta de uma decisão arbitrária do pai, tem a possibilidade de sair do
país negada pelo fato do nome do pai não constar no registro do filho e é
constantemente explorada e abusada por homens.
Não é por acaso que o diretor Karim Ainouz escolha que essas
personagens sejam filmadas em closes
ou em planos médios, com muitos sendo enquadrados a partir de frestas de portas
ou janelas, dando a sensação de que o escopo da vida dessas personagens, o
universo no qual habitam é bastante restrito e limitado. As cenas de sexo são
encenadas sempre a passar um desconforto e as vezes até asco quando o filme
coloca situações nas quais fica evidente que as personagens não estão
consentindo o ato. Essa perspectiva imagética de limitação que não vem de suas
próprias decisões, mas das escolhas de outros. Talvez seja por isso que o
título se refira a uma “vida invisível”, já que elas não são permitidas tomarem
decisões por si, são removidas das próprias vidas.
Carol Duarte faz de Eurídice alguém que vai aos poucos se
resignando ao papel social que lhe é dado. Inicialmente tentando encontrar um
meio de enfrentar a situação, mas se deixando conformar pela situação ao
perceber a falta de escolhas ou perspectivas que lhe são dadas. Fernanda
Montenegro tem uma participação pequena, mas bastante poderosa e é difícil não
se emocionar numa cena próxima ao final na qual a câmera fica o tempo inteiro
focada na atriz, sem qualquer corte, enquanto ela conversa com outra pessoa.
Enquanto isso, Gregório Duvivier faz de Antenor um sujeito
que dá gosto de odiar, construindo-o como um indivíduo medíocre, incapaz e
patético. Ao mesmo tempo, ele é controlador e abusivo. Na verdade, o ator
permite que vejamos que seu comportamento tóxico deriva justamente do
personagem tentar não parecer patético e se conformar com um modelo de “homem
durão”. Seria fácil tornar Antenor uma espécie de coitado inútil, no entanto o
filme deixa claro o quanto ele consegue ser nocivo na vida de Eurídice,
anulando a personalidade e destruindo tudo que ela um dia foi ou aspirou a ser.
Cheio de sensibilidade e emoção, A Vida Invisível é um excelente melodrama que mostra a sociedade
brasileira sob a perspectiva feminina.
Nota: 9/10
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