O cinema já produziu inúmeros
filmes sobre a questão de imigrantes africanos tentando chegar à Europa de
barco em condições precárias. São filmes normalmente voltados para o perigo da
jornada, a dificuldade de se adaptar ao novo país e normalmente são feitos
pelos mesmos países europeus que recebem esses migrantes, contando essas
histórias sob o ponto de vista europeu. Este Atlantique, dirigido pela senegalesa Mati Diop, segue na contramão
dessas tendências, tecendo sua trama do ponto de vista africano e do ponto de
vista não dos que viajam, mas dos que ficam.
O filme se passa em Dacar,
capital do Senegal, e conta a história de Souleiman (Traore) um trabalhador de
construção civil que, depois de meses sem receber, deixa o emprego na
construção de um grande arranha-céu para tentar ir para a Europa de barco com
outros colegas de trabalho. Souleiman está romanticamente envolvido e
apaixonado por Ada (Mame Bineta Sane), que, por sua vez, está prometida ao rico
Omar (Babacar Sylla) por conta de um casamento arranjado pelos pais dela. Um
tempo depois da partida de Souleiman e os outros trabalhadores, eventos
estranhos começam a acontecer na cidade.
Na superfície parece uma história
típica de amor proibido, mas o filme vai aos poucos se colocando no reino do
realismo fantástico. Atlantique é, na
prática, uma história de fantasmas, mas não uma história de terror. É uma
história sobre como aqueles que se vão permanecem conosco e fazem parte de
nossas vidas mesmo estando ausentes. São menos uma assombração e mais um
lembrete do que está faltando na vida dos que ficaram, não só em termos da
presença dessas pessoas que partiram, mas da falta de respostas quanto ao que
aconteceu com elas.
A ideia de que esses fantasmas
muitas vezes precisam “possuir” os que ficaram para poderem se comunicar remete
a noção de que cabe aos que ficaram dar voz esses ausentes, falar pelos que não
podem ou não conseguem, fazê-los serem ouvidos inclusive para o que aconteceu
com eles não aconteça com outros.
Essa sensação de vazio, tédio e
alienação é muito bem construído ao longo do filme, com suas tomadas do sol
causticante criando uma atmosfera opressiva para a cidade de Dacar. As imagens
da imensidão do mar servem como um lembrete do vazio deixado pelos que
partiram, assim como as imagens do bar vazio que Ada e suas amigas frequentavam
com Souleiman e os demais trabalhadores.
Além de falar sobre os problemas
dos migrantes, a trama também se debruça sobre algumas questões sociais do
Senegal, principalmente em relação à estrutura patriarcal conservadora que
existe ao redor de Ada. A personagem tem a vida controlada por homens, seja o
pai, que até a submete a um exame médico para comprovar a família de Omar que
ela é virgem, ao próprio Omar que a trata como propriedade apenas por serem
noivos. Enquanto as amigas de Ada parecem resignadas a essa existência de que a
vida delas irá se resumir a arrumar um marido, mesmo via casamento arranjado,
Ada demonstra querer algo mais, seja a busca por um relacionamento baseado em
um afeto real, se mantendo apegada a imagem de Souleiman, seja descobrir algo
mais em si.
Ao final nem todas as subtramas
se amarram com clareza, mas isso ajuda a transmitir o senso de incompletude e
vazio que o filme tenta construir em relação às marcas e feridas deixadas pela
ausência dos migrantes que nunca vão cicatrizar por completo. A direção de Diop
mantém uma aura de mistério e estranheza ao longo da projeção, constantemente
recorrendo a planos contemplativos (como as já citadas imagens do sol ou do
mar) para deixar o espectador imerso na subjetividade das personagens, para que
vejamos e sintamos o mundo sob o olhar dessas pessoas e é nisso que reside a
força do filme, mesmo que a narrativa não consiga resolver todos os arcos que apresenta.
No fim das contas, Atlantique é um conto sensível sobre
supressão e emancipação de vozes, sobre a criação e preenchimentos de vazios,
sobre os oceanos (reais ou metafóricos) que nos separam daquilo que desejamos.
Nota: 8/10
Trailer
Nenhum comentário:
Postar um comentário